quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Machismo brasileiro


Bolsonaro: ícone do brutal machismo brasileiro

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            As brasileiras e os brasileiros, que ainda não perderam a lucidez e o senso ético, recentemente ficaram chocados e indignados com um pronunciamento do deputado federal fluminense Jair Bolsonaro, o qual da tribuna da Câmara ofendeu uma colega deputada, insinuando o desejo de estuprá-la, embora “ela não merecesse”. Com isso o deputado, já conhecido pelo seu destempero, pela sua apologia a ditaduras e a ditadores, pela sua falta de ética, pelo seu espírito fascista e nazista, ofendeu todas as mulheres brasileiras e fez apologia ao crime de estupro.

            O comportamento antiético, imoral e nazista do deputado Bolsonaro causou, como disse antes, indignação entre aquelas pessoas sérias e éticas, embora não se possa esperar outra coisa de alguém como ele. Porém, é preciso dizer com toda sinceridade que o seu comportamento, típico de bandido, reflete nada mais e nada menos que o machismo que caracteriza a maioria absoluta dos homens do nosso país. Os dados a respeito da violência contra a mulher no Brasil, e que estão à nossa disposição em muitos sites oficiais e sérios, são alarmantes. Cerca de 77% das mulheres maltratadas afirmam terem sido violentadas ou agredidas semanalmente ou até diariamente. A violência, geralmente, é praticada por homens a elas ligados: parceiros, maridos, parentes e até filhos. Boa parte delas são assassinadas. Entre 1980 e 2010 foram assassinadas 92 mil mulheres no Brasil, de modo que se pode falar, sem medo de errar, de um verdadeiro feminicídio.

            O machismo do brasileiro se manifesta também de outras formas. Na atitude arrogante de querer “tirar satisfação”, de “não levar desaforo para casa”, de humilhar os outros, principalmente aqueles que dependem de nós, de não aceitar a perda ou a derrota, como aconteceu recentemente com o senador Aécio Neves, que não queria admitir a sua derrota para uma mulher.

            Trata-se, pois, de um elemento cultural. De norte a sul e de leste a oeste de nosso país os homens, de um modo geral, são machistas. É claro que, quando consultados, a quase totalidades deles têm um discurso liberal e se opõem à violência contra a mulher. Mas, na prática, a teoria é outra. A maioria absoluta deles enxergam a mulher apenas como objeto deles. A mulher é objeto de cama e mesa e uma serviçal que deve realizar todas as tarefas e todos os caprichos deles.

Existem, inclusive, homens cujo discurso político parece revolucionário, mas na hora de se relacionar com a mulher extravasam todo o seu machismo e a sua agressividade. Para tais “revolucionários” a mulher deve ficar em casa realizando tarefas domésticas, lavando roupas e pratos, limpando casa, preparando para eles as refeições e cuidando dos filhos. Ao chegarem em casa, querem encontrar tudo pronto e à disposição deles. Sentam-se majestosamente no sofá de casa para tomar uma “cervejinha”, ver televisão, enquanto a mulher prepara tudo para eles. São incapazes, por exemplo, de ajudar nas tarefas domésticas, como preparar as refeições, trocar uma fralda, lavar os pratos ou arrumar uma mesa.

Há, ainda, a violência contra a mulher, praticada em nome de Deus e da religião. Muitos, ingenuamente ou idiotamente, pensam que a violência religiosa contra a mulher só existe nos países islâmicos. Isso é pura ignorância. O Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), que tem sede em São Leopoldo (RS), realizou recentemente uma pesquisa, já publicada em forma de livro, sobre o assunto. E, por incrível que pareça, a pesquisa constatou um número altíssimo de violências praticadas contra a mulher com motivação meramente religiosa.

Homens de diferentes Igrejas cristãs, fazendo uma leitura literal e fundamentalista de certos textos da Bíblia, consideram normal a agressão à mulher que não quer ser “submissa”. Para eles a Bíblia ensina que a mulher deve sujeitar-se ao homem e aquelas que não se submetem deve ser punidas. É claro que, como disse antes, trata-se de uma leitura enviesada e fundamentalista da Bíblia. Quem estuda seriamente os textos sagrados do judaísmo e do cristianismo sabe que isso não é verdade. Porém, o fato é real e, considerando que quase 90% dos brasileiros declaram-se adeptos do cristianismo, pode-se deduzir que boa parte dos agressores, senão a totalidade, é formada por homens cristãos. O que é grave e muito sério para uma religião que tem como essência o amor ao próximo.

Lamentavelmente boa parte das próprias mulheres introjetou esse machismo e chega a achar normal a agressão praticada por homens. Pode parecer algo paradoxal. Mas é o que vemos diariamente nos comportamento de muitas delas, aceitando passivamente a ação dos homens e submetendo-se resignadamente aos que eles praticam. Vejo, por exemplo, pouca ação e reação das mulheres diante do que a grande mídia e a propaganda fazem com elas. Embora sejam maioria no país, as mulheres não votam em mulheres. O próprio Bolsonaro deve ter sido eleito graças ao voto de muitas mulheres. Após o seu pronunciamento infame, feito da tribuna da Câmara, ele foi defendido publicamente por uma jornalista, já conhecida de todos nós por seus comentários racistas, homofóbicos, machistas e preconceituosos. Eu mesmo tenho tido dificuldades em minhas aulas universitárias para convencer as acadêmicas acerca do machismo do brasileiro e da exploração à qual a mulher é submetida diariamente nos programas televisivos e nas propagandas. Elas acham isso normal!

Ora, se o problema é cultural, só pode ser resolvido através de ações que mudem o comportamento cultural. E a ação que resume todas as outras é a educação. Mas, neste campo, os desafios são muitos, pois as instituições que podem e devem fazer isso estão todas em crise. A família não consegue mais dar orientações sérias aos filhos, e, com a presença de pais machistas, isso é quase impossível. Os políticos, na sua grande parte conservadores e machistas, se omitem e silenciam. Foi revoltante acompanhar os nossos parlamentares por ocasião do pronunciamento de Bolsonaro. Excetuando-se as parlamentares mulheres e alguns outros deputados e senadores, a omissão e o silêncio foi total. E, diz o adágio popular, “quem cala, consente”.

Na grande mídia, golpista por natureza, o silêncio foi amplo e total. Essa mídia que vive atrás de escândalos, que vive obcecada por corrupção, não trouxe para a pauta a corrupção escandalosa de Bolsonaro. Houve maior discussão apenas na mídia pública e nas mídias alternativas. Nas escolas se repercute a cultura machista, de modo que os meninos praticamente não recebem nenhuma orientação sobre isso. Nas Igrejas certamente o clima deve ser o mesmo, pois, salvas algumas poucas exceções, elas são machistas por vocação e, em pleno século XXI, ainda excluem as mulheres das instâncias de poder e de decisão.

Porém, diante de tão grave escândalo, diante da atitude descabida, antiética e imoral do deputado Bolsonaro, é hora de acordarmos, pois ele representa o que há de mais infame, sujo e nojento nas sociedades e nas culturas brasileiras. É hora de nos indignarmos e partirmos para ações concretas que contribuam para uma educação séria e que ajudem a eliminar comportamentos desvairados, desrespeitosos e desumanos como esse que presenciamos recentemente. Não podemos permanecer indiferentes e alheios a atos dessa natureza. Precisamos nos indignar, protestar e realizar pequenas ações que quebrem a arrogância e a intolerância, a agressão, o machismo e a violência contra as mulheres e contra todas as pessoas indefesas de nossa sociedade. Não podemos mais esperar. Se insistirmos em esperar será tarde demais e num breve espaço de tempo essa violência estará atingindo as nossas famílias e as nossas pessoas. Aliás, Bolsonaro, ao agir de forma tão truculenta, já agrediu a todas as mulheres brasileiras. Consequentemente, agrediu a todos nós.

É preciso, como dizia Paulo Freire a mais de quarenta anos atrás, desmistificar a realidade, ou seja, enxergar o que está acontecendo e agir, não ficando de braços cruzados. É preciso contribuir para a educação das pessoas. “Uma das grandes tarefas da educação libertadora é convidar as massas a tornarem-se utópicas, isto é, denunciantes” (Paulo Freire). E denunciar não é apenas apontar o que está acontecendo, mas construir um novo idealismo, ou seja, propor um novo modo de ser e de agir para a humanidade, uma nova forma de presença “que me convida a fazer a história que é minha, que é a história dos homens” (Paulo Freire).

domingo, 7 de dezembro de 2014

Conservadorismo político


Somos um povo quieto, um “povo dos ratos”

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            As análises que se seguiram às eleições de outubro de 2014 dão conta de que o Congresso (Câmara e Senado) eleito neste pleito é o mais conservador desde a ditadura de 1964. Os analistas chegam a afirmar que, com este tipo de Congresso, será muito difícil avançar nas conquistas dos direitos humanos e no respeito pelo ser humano no Brasil. O conservadorismo se manifestou logo depois das eleições, com reações contra a eleição de Dilma Rousseff, com gente pedindo a volta da ditadura.

            Diante do acontecido, ficam algumas perguntas: depois das manifestações de junho de 2013, aqui no Brasil, como entender que o povo brasileiro tenha eleito um Congresso tão conservador e reacionário? Onde estiveram, durante as eleições, os “manifestantes indignados”? Por que não elegeram pessoas mais avançadas e mais ousadas? Ou, pelo menos, por que não houve um “voto de protesto” que pudesse até colocar em descrédito o resultado final das eleições? Como justificar que Aécio Neves, ícone e “para-raios” desse conservadorismo, tenha recebido tantos votos? As manifestações de junho do ano passado, eram ou não eram expressão de desejo de mudança? Pois, o que se esperava era que, a partir desses manifestantes e das manifestações, houvesse uma reviravolta na escolha dos candidatos ao Legislativo Federal e Estadual e a eliminação do conservadorismo político que, segundo as palavras de ordem das próprias manifestações, estariam levando o país ao caos.

            Nestes dias tive a oportunidade de revisitar os escritos de Franz KAFKA. Depois da releitura de alguns textos desse autor, pude entender algumas coisas que aconteceram recentemente aqui no Brasil. Kafka, que nasceu em Praga e viveu entre 1883 e 1924, conviveu em um dos períodos mais conturbados da Europa, tendo assistido a todo o drama da Primeira Guerra Mundial. Por isso foi muito crítico em seus escritos em relação à angústia do ser humano moderno, à questão da existência, das diferentes formas de autoritarismo e de poder. O texto que mais me chamou a atenção e que me ajudou a entender um pouco o atual contexto brasileiro foi o seu livrinho Um artista da fome (Porto Alegre: L&PM, 2010), de modo particular o conto “Josefine, a cantora ou O povo dos ratos”.

            De acordo com Kafka, “a entrega incondicional é quase desconhecida de nosso povo, que acima de tudo ama a astúcia inofensiva, os cochichos pueris, as fofocas inocentes, que põem apenas os lábios em movimento; um povo assim não tem condições de entregar-se incondicionalmente” (KAFKA, p. 57). A história dos últimos 500 anos do Brasil não foi nada mais que um esforço das elites brasileiras no sentido de criar no povo essa “astúcia inofensiva”, de modo que ele pudesse se conformar com tudo, mesmo porque, com a prevalência aqui do elemento religioso, tudo que acontece é “vontade de Deus”.

O nosso sistema sempre foi brutal e marcado pela violência institucionalizada. Por causa disso, e ao mesmo tempo, a vida foi sempre dura para a maioria absoluta dos brasileiros. E, diante de uma vida dura, “cada dia traz consigo surpresas, inquietações, esperanças e medos, de modo que ninguém, sozinho, seria capaz de suportar tudo isso se não tivesse, dia e noite, o apoio dos companheiros” (KAFKA, p. 54-55). Acontece, porém, que, na prática de um sistema onde a violência é institucionalizada, ninguém é companheiro de ninguém e, como diz o mesmo Kafka, o fardo termina sobre os ombros de um só, ou seja, do indivíduo isolado e solitário.

            Nesse contexto, o sistema manipula, divide e desvia o olhar do povo para um bode expiatório. No nosso caso o bode expiatório foi o governo. As elites, através da grande mídia, exploraram as manifestações, impedindo que o povo enxergasse que por trás do problemas brasileiros estão exatamente elas. E, como nos mostra a Antropologia, diante de um bode expiatório, todos perdem a razão e não percebem o óbvio. Ou seja, “ficam todos quietos como ratos” (KAFKA, p. 53) e incapazes de tomar a devida distância para fazer uma análise correta da realidade, pois o desvio do olhar para o bode expiatório torna as pessoas impulsivas e irracionais. De fato, lembra o mesmo Kafka, uma verdadeira oposição “só se faz à distância”, isto é, quando se é capaz de olhar os fatos de maneira racional e objetiva. Os impulsos emocionais não ajudam em nada.

            A partir disso surgem, então, os “salvadores da pátria”, os quais, manipulando os fatos, apresentam-se como aqueles que vão resolver todos os problemas. E o povo, “habituado a sofrer, negligente consigo próprio, rápido nas decisões, conhecedor da morte” (KAFKA, p. 59), deixa-se enganar facilmente por esses, sem saber que tal engano vai custar-lhe a vida.

            Os “salvadores da pátria” geram divisão e isolamento e anulam a ação do povo, pois “ninguém conseguiria fazer sozinho o que, a esse respeito, todo o povo é capaz” (KAFKA, p. 58). Dividir sempre foi a melhor forma que os impérios encontraram para dominar e oprimir. Foi o que fizeram as elites brasileiras no ano passado, durante as manifestações, através da intervenção da mídia golpista que está nas mãos delas. Simplesmente esvaziaram a dimensão revolucionária das manifestações, canalizando tudo para ataques estéreis e histéricos ao governo. Diante dessa situação o povo recua e volta ao de sempre: o jeitinho, que, aliás, diga-se de passagem, não é somente uma prática dos brasileiros, mas um dado universal, uma vez que as várias formas de ameaças “que pairam sobre nós deixam-nos mais silenciosos, mais humildes” e, infelizmente, “mais propensos aos caprichos” (KAFKA, p. 60).

            Tudo isso concorre para uma “certa infantilidade perene” e uma “velhice prematura” (KAFKA, p. 63-64) no campo da política. O povo se cansa de lutar, se conforma e sonha relaxado numa “pausa necessária entre as batalhas” (KAFKA, p. 65), acreditando piamente que os “salvadores da pátria”, com seus discursos demagógicos e altamente conservadores, vão resolver todos os problemas. E “deitado em berço esplêndido”, nesta maldita, mas “aconchegante cama” (Ibidem) o povo permanece obtuso e enganado, decidindo sempre contra ele mesmo (KAFKA, p. 22).

            Só resta, então, colocar a culpa nos outros, no bode expiatório, não assumindo cada um e cada grupo a sua parcela de responsabilidade. Inerte, o povo não toma nenhuma decisão e tende a supervalorizar “o momento presente em que as decisões aparecem” (KAFKA, p. 25). E isso porque, nesse contexto do qual estamos falando, ele é incapaz de enxergar as coisas como elas são, embora saibamos que “as coisas na verdade são simples, todos podem compreendê-las ao chegar mais perto” (KAFKA, p. 24). Mas o segredo está aqui: chegar mais perto, ou seja, vê-las por dentro, com um olhar crítico e perspicaz. Todos, então, se conformam com as aparências. Só que “as aparentes mudanças nessa situação ao longo do tempo na verdade não são mudanças” (KAFKA, p. 25). E uma das formas que os sistemas e as elites encontram para não mudar nada é fazendo mudanças aparentes, isto é, enganando o povo.

            Nesse contexto alguns políticos ficam fazendo um tipo de oposição idiota, reduzido a puras lamentelas e reclamações estéreis, muito bem manipuladas pela mídia golpista, uma vez que “entre nós são poucos os que conseguem ficar de boca fechada” (KAFKA, p. 59). Enquanto isso, tudo permanece na mera fachada. O povo continua se virando, se salvando por si próprio, dando duro, e os “salvadores da pátria” apresentando-se como aqueles que estão resolvendo os problemas do país.

            Há no mundo atual, e não somente no Brasil, uma certa tendência a supervalorizar o conservadorismo, as ideologias de direita e os fundamentalismos, embora não faltem sinais de esperança, como os governos sul-americanos de esquerda e alguns movimentos na Europa e nos resto do mundo. Essa tendência, dizem os analistas, pode significar uma séria ameaça para a humanidade, que já sofreu tanto por causa disso. O “povo segue em seu caminho” de forma tranquila, “sem nenhuma decepção visível, altaneiro, uma massa serena que, a bem dizer, mesmo que as aparências sugiram o contrário, só é capaz de dar, jamais de receber” (KAFKA, p. 75). “Há vezes em que nosso povo tão sensível não se deixa sensibilizar” (Ib., p. 68). Por isso já está na hora de nos unirmos em torno de algumas questões essenciais e de alguns valores fundamentais para promovermos uma reviravolta. Precisamos tomar conta de nós mesmos como adultos e não como crianças que “não têm tempo de ser criança” (KAFKA, p. 62-63). E, nesse contexto, somos muitos os que temos grandes e maiores responsabilidades e um dia a história vai nos cobrar. Não podemos apenas ficar rindo, fazendo piadas de nós mesmos, pois “ninguém ri diante de uma responsabilidade; rir de algo assim seria faltar ao dever”, mesmo porque “é o cúmulo da maldade o que os mais vis entre nós impingem” (KAFKA, p. 57-58) ao povo dos pobres e dos excluídos.