domingo, 7 de dezembro de 2014

Conservadorismo político


Somos um povo quieto, um “povo dos ratos”

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            As análises que se seguiram às eleições de outubro de 2014 dão conta de que o Congresso (Câmara e Senado) eleito neste pleito é o mais conservador desde a ditadura de 1964. Os analistas chegam a afirmar que, com este tipo de Congresso, será muito difícil avançar nas conquistas dos direitos humanos e no respeito pelo ser humano no Brasil. O conservadorismo se manifestou logo depois das eleições, com reações contra a eleição de Dilma Rousseff, com gente pedindo a volta da ditadura.

            Diante do acontecido, ficam algumas perguntas: depois das manifestações de junho de 2013, aqui no Brasil, como entender que o povo brasileiro tenha eleito um Congresso tão conservador e reacionário? Onde estiveram, durante as eleições, os “manifestantes indignados”? Por que não elegeram pessoas mais avançadas e mais ousadas? Ou, pelo menos, por que não houve um “voto de protesto” que pudesse até colocar em descrédito o resultado final das eleições? Como justificar que Aécio Neves, ícone e “para-raios” desse conservadorismo, tenha recebido tantos votos? As manifestações de junho do ano passado, eram ou não eram expressão de desejo de mudança? Pois, o que se esperava era que, a partir desses manifestantes e das manifestações, houvesse uma reviravolta na escolha dos candidatos ao Legislativo Federal e Estadual e a eliminação do conservadorismo político que, segundo as palavras de ordem das próprias manifestações, estariam levando o país ao caos.

            Nestes dias tive a oportunidade de revisitar os escritos de Franz KAFKA. Depois da releitura de alguns textos desse autor, pude entender algumas coisas que aconteceram recentemente aqui no Brasil. Kafka, que nasceu em Praga e viveu entre 1883 e 1924, conviveu em um dos períodos mais conturbados da Europa, tendo assistido a todo o drama da Primeira Guerra Mundial. Por isso foi muito crítico em seus escritos em relação à angústia do ser humano moderno, à questão da existência, das diferentes formas de autoritarismo e de poder. O texto que mais me chamou a atenção e que me ajudou a entender um pouco o atual contexto brasileiro foi o seu livrinho Um artista da fome (Porto Alegre: L&PM, 2010), de modo particular o conto “Josefine, a cantora ou O povo dos ratos”.

            De acordo com Kafka, “a entrega incondicional é quase desconhecida de nosso povo, que acima de tudo ama a astúcia inofensiva, os cochichos pueris, as fofocas inocentes, que põem apenas os lábios em movimento; um povo assim não tem condições de entregar-se incondicionalmente” (KAFKA, p. 57). A história dos últimos 500 anos do Brasil não foi nada mais que um esforço das elites brasileiras no sentido de criar no povo essa “astúcia inofensiva”, de modo que ele pudesse se conformar com tudo, mesmo porque, com a prevalência aqui do elemento religioso, tudo que acontece é “vontade de Deus”.

O nosso sistema sempre foi brutal e marcado pela violência institucionalizada. Por causa disso, e ao mesmo tempo, a vida foi sempre dura para a maioria absoluta dos brasileiros. E, diante de uma vida dura, “cada dia traz consigo surpresas, inquietações, esperanças e medos, de modo que ninguém, sozinho, seria capaz de suportar tudo isso se não tivesse, dia e noite, o apoio dos companheiros” (KAFKA, p. 54-55). Acontece, porém, que, na prática de um sistema onde a violência é institucionalizada, ninguém é companheiro de ninguém e, como diz o mesmo Kafka, o fardo termina sobre os ombros de um só, ou seja, do indivíduo isolado e solitário.

            Nesse contexto, o sistema manipula, divide e desvia o olhar do povo para um bode expiatório. No nosso caso o bode expiatório foi o governo. As elites, através da grande mídia, exploraram as manifestações, impedindo que o povo enxergasse que por trás do problemas brasileiros estão exatamente elas. E, como nos mostra a Antropologia, diante de um bode expiatório, todos perdem a razão e não percebem o óbvio. Ou seja, “ficam todos quietos como ratos” (KAFKA, p. 53) e incapazes de tomar a devida distância para fazer uma análise correta da realidade, pois o desvio do olhar para o bode expiatório torna as pessoas impulsivas e irracionais. De fato, lembra o mesmo Kafka, uma verdadeira oposição “só se faz à distância”, isto é, quando se é capaz de olhar os fatos de maneira racional e objetiva. Os impulsos emocionais não ajudam em nada.

            A partir disso surgem, então, os “salvadores da pátria”, os quais, manipulando os fatos, apresentam-se como aqueles que vão resolver todos os problemas. E o povo, “habituado a sofrer, negligente consigo próprio, rápido nas decisões, conhecedor da morte” (KAFKA, p. 59), deixa-se enganar facilmente por esses, sem saber que tal engano vai custar-lhe a vida.

            Os “salvadores da pátria” geram divisão e isolamento e anulam a ação do povo, pois “ninguém conseguiria fazer sozinho o que, a esse respeito, todo o povo é capaz” (KAFKA, p. 58). Dividir sempre foi a melhor forma que os impérios encontraram para dominar e oprimir. Foi o que fizeram as elites brasileiras no ano passado, durante as manifestações, através da intervenção da mídia golpista que está nas mãos delas. Simplesmente esvaziaram a dimensão revolucionária das manifestações, canalizando tudo para ataques estéreis e histéricos ao governo. Diante dessa situação o povo recua e volta ao de sempre: o jeitinho, que, aliás, diga-se de passagem, não é somente uma prática dos brasileiros, mas um dado universal, uma vez que as várias formas de ameaças “que pairam sobre nós deixam-nos mais silenciosos, mais humildes” e, infelizmente, “mais propensos aos caprichos” (KAFKA, p. 60).

            Tudo isso concorre para uma “certa infantilidade perene” e uma “velhice prematura” (KAFKA, p. 63-64) no campo da política. O povo se cansa de lutar, se conforma e sonha relaxado numa “pausa necessária entre as batalhas” (KAFKA, p. 65), acreditando piamente que os “salvadores da pátria”, com seus discursos demagógicos e altamente conservadores, vão resolver todos os problemas. E “deitado em berço esplêndido”, nesta maldita, mas “aconchegante cama” (Ibidem) o povo permanece obtuso e enganado, decidindo sempre contra ele mesmo (KAFKA, p. 22).

            Só resta, então, colocar a culpa nos outros, no bode expiatório, não assumindo cada um e cada grupo a sua parcela de responsabilidade. Inerte, o povo não toma nenhuma decisão e tende a supervalorizar “o momento presente em que as decisões aparecem” (KAFKA, p. 25). E isso porque, nesse contexto do qual estamos falando, ele é incapaz de enxergar as coisas como elas são, embora saibamos que “as coisas na verdade são simples, todos podem compreendê-las ao chegar mais perto” (KAFKA, p. 24). Mas o segredo está aqui: chegar mais perto, ou seja, vê-las por dentro, com um olhar crítico e perspicaz. Todos, então, se conformam com as aparências. Só que “as aparentes mudanças nessa situação ao longo do tempo na verdade não são mudanças” (KAFKA, p. 25). E uma das formas que os sistemas e as elites encontram para não mudar nada é fazendo mudanças aparentes, isto é, enganando o povo.

            Nesse contexto alguns políticos ficam fazendo um tipo de oposição idiota, reduzido a puras lamentelas e reclamações estéreis, muito bem manipuladas pela mídia golpista, uma vez que “entre nós são poucos os que conseguem ficar de boca fechada” (KAFKA, p. 59). Enquanto isso, tudo permanece na mera fachada. O povo continua se virando, se salvando por si próprio, dando duro, e os “salvadores da pátria” apresentando-se como aqueles que estão resolvendo os problemas do país.

            Há no mundo atual, e não somente no Brasil, uma certa tendência a supervalorizar o conservadorismo, as ideologias de direita e os fundamentalismos, embora não faltem sinais de esperança, como os governos sul-americanos de esquerda e alguns movimentos na Europa e nos resto do mundo. Essa tendência, dizem os analistas, pode significar uma séria ameaça para a humanidade, que já sofreu tanto por causa disso. O “povo segue em seu caminho” de forma tranquila, “sem nenhuma decepção visível, altaneiro, uma massa serena que, a bem dizer, mesmo que as aparências sugiram o contrário, só é capaz de dar, jamais de receber” (KAFKA, p. 75). “Há vezes em que nosso povo tão sensível não se deixa sensibilizar” (Ib., p. 68). Por isso já está na hora de nos unirmos em torno de algumas questões essenciais e de alguns valores fundamentais para promovermos uma reviravolta. Precisamos tomar conta de nós mesmos como adultos e não como crianças que “não têm tempo de ser criança” (KAFKA, p. 62-63). E, nesse contexto, somos muitos os que temos grandes e maiores responsabilidades e um dia a história vai nos cobrar. Não podemos apenas ficar rindo, fazendo piadas de nós mesmos, pois “ninguém ri diante de uma responsabilidade; rir de algo assim seria faltar ao dever”, mesmo porque “é o cúmulo da maldade o que os mais vis entre nós impingem” (KAFKA, p. 57-58) ao povo dos pobres e dos excluídos.

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