Somos um povo quieto, um “povo dos
ratos”
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e
professor universitário
As análises que se seguiram às
eleições de outubro de 2014 dão conta de que o Congresso (Câmara e Senado)
eleito neste pleito é o mais conservador desde a ditadura de 1964. Os analistas
chegam a afirmar que, com este tipo de Congresso, será muito difícil avançar
nas conquistas dos direitos humanos e no respeito pelo ser humano no Brasil. O
conservadorismo se manifestou logo depois das eleições, com reações contra a
eleição de Dilma Rousseff, com gente pedindo a volta da ditadura.
Diante do acontecido, ficam algumas
perguntas: depois das manifestações de junho de 2013, aqui no Brasil, como
entender que o povo brasileiro tenha eleito um Congresso tão conservador e
reacionário? Onde estiveram, durante as eleições, os “manifestantes
indignados”? Por que não elegeram pessoas mais avançadas e mais ousadas? Ou,
pelo menos, por que não houve um “voto de protesto” que pudesse até colocar em
descrédito o resultado final das eleições? Como justificar que Aécio Neves,
ícone e “para-raios” desse conservadorismo, tenha recebido tantos votos? As
manifestações de junho do ano passado, eram ou não eram expressão de desejo de mudança? Pois, o que se esperava era
que, a partir desses manifestantes e das manifestações, houvesse uma
reviravolta na escolha dos candidatos ao Legislativo Federal e Estadual e a
eliminação do conservadorismo político que, segundo as palavras de ordem das
próprias manifestações, estariam levando o país ao caos.
Nestes dias tive a oportunidade de
revisitar os escritos de Franz KAFKA. Depois da releitura de alguns textos
desse autor, pude entender algumas coisas que aconteceram recentemente aqui no
Brasil. Kafka, que nasceu em Praga e viveu entre 1883 e 1924, conviveu em um
dos períodos mais conturbados da Europa, tendo assistido a todo o drama da
Primeira Guerra Mundial. Por isso foi muito crítico em seus escritos em relação
à angústia do ser humano moderno, à questão da existência, das diferentes
formas de autoritarismo e de poder. O texto que mais me chamou a atenção e que
me ajudou a entender um pouco o atual contexto brasileiro foi o seu livrinho Um artista da fome (Porto Alegre:
L&PM, 2010), de modo particular o conto “Josefine, a cantora ou O povo dos
ratos”.
De acordo com Kafka, “a entrega
incondicional é quase desconhecida de nosso povo, que acima de tudo ama a
astúcia inofensiva, os cochichos pueris, as fofocas inocentes, que põem apenas
os lábios em movimento; um povo assim não tem condições de entregar-se
incondicionalmente” (KAFKA, p. 57). A história dos últimos 500 anos do Brasil
não foi nada mais que um esforço das elites brasileiras no sentido de criar no
povo essa “astúcia inofensiva”, de modo que ele pudesse se conformar com tudo,
mesmo porque, com a prevalência aqui do elemento religioso, tudo que acontece é
“vontade de Deus”.
O nosso sistema sempre foi brutal e marcado pela violência institucionalizada. Por causa
disso, e ao mesmo tempo, a vida foi sempre dura
para a maioria absoluta dos brasileiros. E, diante de uma vida dura, “cada dia
traz consigo surpresas, inquietações, esperanças e medos, de modo que ninguém,
sozinho, seria capaz de suportar tudo isso se não tivesse, dia e noite, o apoio
dos companheiros” (KAFKA, p. 54-55). Acontece, porém, que, na prática de um
sistema onde a violência é institucionalizada, ninguém é companheiro de ninguém
e, como diz o mesmo Kafka, o fardo termina sobre os ombros de um só, ou seja,
do indivíduo isolado e solitário.
Nesse contexto, o sistema manipula,
divide e desvia o olhar do povo para um bode
expiatório. No nosso caso o bode expiatório foi o governo. As elites,
através da grande mídia, exploraram as manifestações, impedindo que o povo
enxergasse que por trás do problemas brasileiros estão exatamente elas. E, como
nos mostra a Antropologia, diante de um bode expiatório, todos perdem a razão e
não percebem o óbvio. Ou seja, “ficam todos quietos como ratos” (KAFKA, p. 53)
e incapazes de tomar a devida distância
para fazer uma análise correta da realidade, pois o desvio do olhar para o bode
expiatório torna as pessoas impulsivas e irracionais. De fato, lembra o mesmo
Kafka, uma verdadeira oposição “só se faz à distância”, isto é, quando se é
capaz de olhar os fatos de maneira racional e objetiva. Os impulsos emocionais
não ajudam em nada.
A partir disso surgem, então, os
“salvadores da pátria”, os quais, manipulando os fatos, apresentam-se como
aqueles que vão resolver todos os problemas. E o povo, “habituado a sofrer,
negligente consigo próprio, rápido nas decisões, conhecedor da morte” (KAFKA,
p. 59), deixa-se enganar facilmente por esses, sem saber que tal engano vai
custar-lhe a vida.
Os “salvadores da pátria” geram
divisão e isolamento e anulam a ação do povo, pois “ninguém conseguiria fazer
sozinho o que, a esse respeito, todo o povo é capaz” (KAFKA, p. 58). Dividir
sempre foi a melhor forma que os impérios encontraram para dominar e oprimir.
Foi o que fizeram as elites brasileiras no ano passado, durante as
manifestações, através da intervenção da mídia
golpista que está nas mãos delas. Simplesmente esvaziaram a dimensão revolucionária das
manifestações, canalizando tudo para ataques estéreis e histéricos ao governo.
Diante dessa situação o povo recua e volta ao de sempre: o jeitinho, que, aliás, diga-se de passagem, não é somente uma
prática dos brasileiros, mas um dado universal, uma vez que as várias formas de
ameaças “que pairam sobre nós deixam-nos mais silenciosos, mais humildes” e,
infelizmente, “mais propensos aos caprichos” (KAFKA, p. 60).
Tudo isso concorre para uma “certa
infantilidade perene” e uma “velhice prematura” (KAFKA, p. 63-64) no campo da política. O povo se cansa de lutar, se
conforma e sonha relaxado numa “pausa
necessária entre as batalhas” (KAFKA, p. 65), acreditando piamente que os
“salvadores da pátria”, com seus discursos demagógicos e altamente
conservadores, vão resolver todos os problemas. E “deitado em berço
esplêndido”, nesta maldita, mas
“aconchegante cama” (Ibidem) o povo
permanece obtuso e enganado, decidindo sempre contra ele
mesmo (KAFKA, p. 22).
Só resta, então, colocar a culpa nos
outros, no bode expiatório, não assumindo cada um e cada grupo a sua parcela de
responsabilidade. Inerte, o povo não
toma nenhuma decisão e tende a supervalorizar
“o momento presente em que as decisões aparecem” (KAFKA, p. 25). E isso porque,
nesse contexto do qual estamos falando, ele é incapaz de enxergar as coisas
como elas são, embora saibamos que “as coisas na verdade são simples, todos
podem compreendê-las ao chegar mais perto” (KAFKA, p. 24). Mas o segredo está
aqui: chegar mais perto, ou seja,
vê-las por dentro, com um olhar crítico e perspicaz. Todos, então, se conformam
com as aparências. Só que “as
aparentes mudanças nessa situação ao longo do tempo na verdade não são
mudanças” (KAFKA, p. 25). E uma das formas que os sistemas e as elites
encontram para não mudar nada é fazendo mudanças aparentes, isto é, enganando o
povo.
Nesse contexto alguns políticos
ficam fazendo um tipo de oposição idiota,
reduzido a puras lamentelas e reclamações estéreis, muito bem manipuladas pela
mídia golpista, uma vez que “entre nós são poucos os que conseguem ficar de
boca fechada” (KAFKA, p. 59). Enquanto isso, tudo permanece na mera fachada. O povo continua se virando, se
salvando por si próprio, dando duro, e os “salvadores da pátria”
apresentando-se como aqueles que estão resolvendo os problemas do país.
Há no mundo atual, e não somente no
Brasil, uma certa tendência a
supervalorizar o conservadorismo, as ideologias de direita e os
fundamentalismos, embora não faltem sinais
de esperança, como os governos sul-americanos de esquerda e alguns
movimentos na Europa e nos resto do mundo. Essa tendência, dizem os analistas,
pode significar uma séria ameaça para a humanidade, que já sofreu tanto por
causa disso. O “povo segue em seu caminho” de forma tranquila, “sem nenhuma
decepção visível, altaneiro, uma massa serena que, a bem dizer, mesmo que as
aparências sugiram o contrário, só é capaz de dar, jamais de receber” (KAFKA,
p. 75). “Há vezes em que nosso povo tão sensível não se deixa sensibilizar” (Ib., p. 68). Por isso já está na hora de
nos unirmos em torno de algumas
questões essenciais e de alguns valores fundamentais para promovermos uma reviravolta. Precisamos tomar conta de
nós mesmos como adultos e não como
crianças que “não têm tempo de ser criança” (KAFKA, p. 62-63). E, nesse
contexto, somos muitos os que temos grandes e maiores responsabilidades e um
dia a história vai nos cobrar. Não podemos apenas ficar rindo, fazendo piadas de nós mesmos, pois “ninguém ri diante de uma
responsabilidade; rir de algo assim seria faltar ao dever”, mesmo porque “é o
cúmulo da maldade o que os mais vis entre nós impingem” (KAFKA, p. 57-58) ao
povo dos pobres e dos excluídos.
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