segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Realidade


Quando o diálogo é impossível

 José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

                Nos últimos dias tem se falado muito em diálogo, especialmente nos meios políticos. Sem dúvida alguma o diálogo é fundamental para a convivência pacífica entre as pessoas e os grupos humanos. Sem diálogo não conseguimos caminhar na direção de uma meta que, indo além dos interesses pessoais e corporativos, aponte o bem comum, ou seja, o bem de todos os cidadãos e de todas as cidadãs.

                A palavra “diálogo” vem do grego, e literalmente significa “por meio da (dia) palavra (logos)”. Dialogar, portanto, significa buscar o entendimento da realidade através da emissão de palavras, ou seja, através da conversa. Duas ou mais pessoas se encontram e tentam entender o mundo, e o que está acontecendo nele, através da atitude de conversar, através da expressão de opiniões e de ideias.

                Porém, para que haja verdadeiro diálogo é indispensável que, antes dele e durante a sua realização, sejam respeitados alguns pressupostos fundamentais. O primeiro desse pressuposto é a existência de sujeitos autônomos e verdadeiramente livres. Não pode existir diálogo autêntico entre pessoas subjugadas e escravas, que não possuem opinião própria e o suficiente conhecimento para formar uma opinião. Essa falta de liberdade e de autonomia pode ser provocada, hoje, por diversos fatores. Talvez o mais forte deles seja a influência da grande mídia, a qual não educa para a autonomia e a liberdade, mas, com suas estratégias maquiavélicas, condiciona as pessoas. Produto dessa lavagem cerebral midiática é a “cultura consumista” que leva a pessoa, em nome da satisfação imediata dos desejos, a se submeter a muitas formas de escravidão. O consumidor obsessivo e voraz não está em condições de dialogar.

                Um segundo pressuposto é a atitude de buscar juntos a verdade, em vista da justiça e do bem comum. Não pode haver diálogo se os que querem dialogar, conversar, não estão motivados por esse princípio. É impossível dialogar quando alguém mente, segue a mentira, e busca, na conversa, vantagens pessoais egoístas. Um desafio para o momento atual, uma vez que se disseminou entre nós a mentira e o espírito de competição. Um terceiro pressuposto para o diálogo é aquilo que eu chamo de escuta amorosa do outro ou da outra. Para dialogar é preciso que os dialogantes estejam desarmados, sem preconceito, dispostos a acolher com humildade e simplicidade aquela parte de verdade que está presente na fala da outra pessoa. Se alguém parte do princípio de que está sempre com a razão e de que a verdade está sempre do seu lado, o diálogo torna-se impossível.

                A partir disso pode-se colocar um quarto pressuposto. É preciso levar a sério o que a outra pessoa diz. Não há como dialogar quando alguém não leva a sério a fala do outro, quando alguém despreza o que ele diz, ou até mesmo ridiculariza suas opiniões e suas palavras. No diálogo é preciso sempre acreditar na palavra da outra pessoa, independentemente do que ela é e do que ela diz. Essa atitude abre caminho para um quinto pressuposto: disponibilidade para rever os próprios pontos de vista, as próprias convicções, a partir da busca em comum da verdade, da escuta amorosa e da seriedade com a qual se ouve a outra pessoa. O diálogo torna-se impossível e infecundo quando um dos dialogantes não está disposto a mudar seus pontos de vista, a partir do que escuta e a partir da descoberta de novas verdades que aparecem no diálogo.

                Por fim, um último pressuposto para o diálogo é a busca da lógica e da racionalidade. Não há como dialogar quando se foge desse princípio, quando não se quer submeter o próprio pensamento e a própria conversa às exigências do rigor da lógica e da razão. Trata-se, é claro, não de um racionalismo estúpido, que despreza a espontaneidade e a naturalidade do diálogo, mas daquele comportamento que se recusa a reconhecer o óbvio e o real. Aquela conversa alimentada por fantasias, por ilusões, por fugas da realidade e do mundo real. Quando a conversa deixa de ser terrena, concreta, e se desloca para “as nuvens”, ela deixa de ser diálogo, torna-se delírio.

                Do que foi dito pode-se deduzir que o diálogo se torna impossível quando se fazem presentes três elementos. O primeiro deles é a arrogância ideológica. De forma consciente e propositada a pessoa se coloca no âmbito do diálogo como aquele que detém a verdade absoluta e a razão total. E faz isso por uma questão ideológica, ou seja, porque está convencida não tanto de que o que ela pensa é verdade absoluta, mas porque o simples ato de dialogar já significaria ceder; significaria minar as bases dos seus privilégios e dos privilégios do grupo ao qual pertence. Para o arrogante, escutar e, pior ainda, ceder são sinônimos de fraqueza.

                O segundo elemento que impede a realização de um diálogo autêntico é a ignorância, isto é, a falta de conhecimento suficiente de uma determinada realidade. Muitas pessoas são intransigentes e bloqueiam o diálogo porque não são detentoras do saber. Não só o saber científico, mas a sabedoria ou sabor da vida, a experiência do viver. Algumas pessoas não são culpadas de serem ignorantes. A vida e a sociedade lhes negaram o direito de saber, o direito de conhecer. Outras, porém, são ignorantes porque, mesmo tendo a oportunidade de conhecer, se recusam a adquirir aquela sabedoria necessária à vida. E se recusam porque o conhecimento comporta necessariamente a obrigação de mudar de vida, de posição e de opinião. Por isso preferem permanecer na ignorância.

                O terceiro elemento que torna o diálogo impossível é a debilidade mental. Existem pessoas que, por diversas razões, inclusive por deficiências psicológicas, são incapazes de compreender determinados raciocínios e determinadas sentenças. A sua capacidade de entendimento é muito pequena e, por mais que alguém tente explicitar bem o seu pensamento, essas pessoas são incapazes de compreender o que o outro fala. Tais pessoas, de um modo geral, não podem ser culpabilizadas por esse comportamento, uma vez que tal situação não depende da simples vontade ou do simples querer. É algo bem mais complexo do que se pensa.

Geralmente, nas instituições, existem muitas dessas pessoas ocupando cargos de gestão e de direção. E são colocadas ali de propósito: para que não entendam nada e, não entendendo, deixem as coisas como estão. Por serem débeis mentais a única coisa que sabem fazer é defender com unhas e dentes a instituição e o status quo. O diálogo com tais pessoas é impossível. E as instituições gostam disso porque têm nessas pessoas defensores ferrenhos e não precisam enfrentar diretamente o grande público. O gestor débil mental é o “para-raios” que captura e desvia para o nada toda possível investida contra a instituição.

                Diante desta situação de impossibilidade de diálogo, o que podemos fazer? Antes de tudo é preciso silenciar, mas sem ceder à tentação de sucumbir à arrogância, à ignorância e à debilidade. Existem pessoas com as quais é inútil tentar dialogar. Seria perda de tempo, ou, como diz um ditado napolitano, “dar banho em porco: perde-se tempo, água e sabão”. O silêncio, porém, não deve ser sinônimo de omissão. Terá que ser um silêncio ativo que leve a outra pessoa a perceber que a atitude de calar-se é um ato de rebeldia e de protesto diante do que está acontecendo. Lembro-me aqui do silêncio dos torturados diante dos seus algozes, do silêncio de Cristo diante de Herodes e de Pilatos.

                Às vezes é preciso silenciar para tentar salvar uma boa convivência. Viver num permanente conflito com determinadas pessoas nem sempre é sadio e agradável. Tal atitude gera grandes tensões, provoca doenças e não resolve nada. É claro que, muitas vezes, será preciso enfrentar o conflito para não sermos omissos e para que o nosso silêncio não represente uma conformação com a injustiça e a maldade. Mas, dependendo do caso, a melhor resposta é aquela que não se dá. O melhor diálogo é recusar-se a responder às provocações de determinadas pessoas.

                Uma terceira atitude, diante da impossibilidade do diálogo, é ficar sempre atento às possíveis brechas que podem aparecer e oferecer a oportunidade de iniciar um diálogo. Muitas vezes criam-se situações que podem ser uma ocasião para dialogar. A vida sempre tem as suas surpresas. Por mais que alguém seja intransigente, de repente, a vida se lhe apresenta com algumas lições e alguns desafios, obrigando-a a buscar o diálogo com os outros.

                Por fim, uma quarta atitude seria aquela de manter-se sempre aberto e vigilante. Antes de tudo para verificar se a arrogância, a ignorância e a debilidade não estão dentro de nós mesmos. Infelizmente temos sempre a tendência de achar que o problema está no outro ou nos outros. Com isso nos recusamos a olhar para dentro de nós mesmos. E, com frequência, pode acontecer que a dificuldade para dialogar esteja mais em nós do que nos outros. Além disso, a abertura e a vigilância nos permitem viver antenados, ou seja, atentos ao que acontece ao nosso redor, buscando sempre uma ocasião para dialogar. E quantas vezes perdemos a chance de iniciar o diálogo porque não fomos capazes de perceber as chances que se apresentaram a nós; porque nos fechamos em nós mesmos e não descobrimos tantas oportunidades que tivemos para “puxar uma boa conversa”.

                Tudo isso poderia ser resumido numa frase: para dialogar é preciso amar. “O diálogo é intersubjetividade, é, por isso mesmo, ‘situado e datado’. Se não há um profundo amor ao homem e ao mundo, não há diálogo [...]. Porque o amor é ato de coragem, nunca de medo, é compromisso assumido com o homem concreto no mundo e com o mundo [...]. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo o homem oprimido e vencido, não posso dialogar” (Paulo FREIRE). E parece-me que a falta de amor é a razão principal da falta de diálogo no mundo de hoje. Por trás da falta de amor esconde-se a arrogância, a ignorância e também certas debilidades que atravancam o diálogo. A falta de amor gera a desesperança e a crença de que é inútil dialogar. “Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não há diálogo. Seu encontro é vazio e estéril, burocrático e fastidioso” (Paulo FREIRE).

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Atualidade política


Oposição de palanque

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            No Brasil, atualmente, não temos oposição política séria. O que temos é uma oposição de palanque que não faz política no sentido verdadeiro da expressão, mas apenas barulho, correndo atrás de “escândalos”, como urubu atrás de carniça. Uma oposição sedenta de exibicionismo e dos holofotes da mídia, fazendo puro sensacionalismo.

            Oposição séria faz política, entendida como busca do bem comum, dos cidadãos e das cidadãs de uma nação. Já na Grécia antiga a política (politichè) era a arte de cuidar bem dos interesses da polis, ou seja, da cidade, o que significava cuidar bem do bem das pessoas que compunham as cidades-estados gregas. Neste sentido o conceito de política cultivado pelos gregos se aproxima bastante da visão romana, que falava da “res publica” (origem da palavra “república), isto é, da “coisa pública”, daquilo que é do interesse de todas as pessoas. Salvaguardadas as devidas proporções, pois sabemos o que gregos e romanos aprontaram, é possível afirmar que, tendo presente a origem da política e da república, ser político ou fazer política é um direito e um dever de todo cidadão ou cidadã. Fazer política é engajar-se e comprometer-se com projetos sérios, críveis e factíveis, em favor de todas as pessoas. Não é subir em palanques e tribunas para falar bonito, especialmente para criar sensacionalismo e pretender, com isso, angariar votos para si mesmo ou para o próprio partido.

            No Brasil, atualmente e com as devidas exceções, faz-se oposição por oposição. Ser oposição é sinônimo de atuação para aniquilar o partido adversário, independentemente de saber se isso vai contribuir ou não para o bem das cidadãs e dos cidadãos. Fazer oposição, especialmente para os partidos que representam as elites brasileiras e seus interesses, é colocar-se contra de qualquer jeito, de modo a criar sérios entraves para o partido (ou partidos) que está no poder. Os interesses da nação, do povo, ficam em segundo plano ou até mesmo não são considerados.

            A situação é ainda muito mais grave ao percebermos que os que atualmente fazem oposição política são quase todos pessoas sem credibilidade. Também os partidos de oposição, com raríssimas exceções, são partidos desacreditados. Quem, no Brasil, está na oposição política? Em primeiro lugar estão políticos e partidos que representam não o povo, e seus interesses, mas a elite brasileira. São políticos e partidos que simbolizam o que há de mais nojento na política brasileira. O PSDB, por exemplo, tenta fugir do rótulo de partido conservador e atrasado, mas, nas últimas eleições, com a candidatura de Aécio Neves, atraiu os eleitores mais retrógados, preconceituosos, e discriminadores. Ficou visível a identificação desses últimos com o partido. E, em nenhum momento da campanha, o PSDB se manifestou de maneira clara e decisiva contra determinados comportamentos e atitudes, como, por exemplo, o preconceito contra os nordestinos. As manifestações eram lacônicas e ambíguas, visando explicitamente não espantar os eleitores ultraconservadores e de direita. Nas aparências o PSDB se apresenta como partido social e democrático, mas, na prática, comporta-se como truculento e viciado, a ponto de atrair certos tipos de eleitores.

            Na oposição estão também todos os partidos que se intitulam “de esquerda”. Mas, além de divididos e com um discurso ultrapassado, seguem a mesma lógica da oposição por oposição. Recusam-se a participar do jogo democrático e terminam por não ter uma incidência significativa sobre a “res publica”. Falta a esses partidos muita dose de realismo e de capacidade para entender que política não é o mesmo que angelismo e que não existem decisões totalmente puras e isentas de ambiguidades. Participar implica, pois, aceitar a negociação e o diálogo, visando antes de tudo a democracia e o bem do povo. Muitas vezes é preferível ceder do que ser intransigente, puritano e, com isso, deixar de contribuir mais significativamente.

            Convém recordar aqui um elemento da Psicologia: como em outra situações também na política os semelhantes se atraem. A sabedoria popular rural já nos ensina isso a bastante tempo, quando afirma que “a vaca pintada sempre procura uma camarada”. Assim sendo, os atuais oposicionistas e seus partidos atraem os seus semelhantes. Se a oposição é uma oposição puramente de palanque, acreditando que estamos sempre em época de eleições, é claro que os seus simpatizantes vão ser pessoas do mesmo estilo. Pessoas que confundem política com politicagem, com jogo sujo, com “o quanto pior, melhor”.

            O que acabo de dizer ficou bem visível no retorno teatral de Aécio Neves ao Senado, após ser derrotado nas eleições presidenciais. Seu retorno foi marcado pelo tom rancoroso, arrogante, espalhafatoso, de candidato derrotado e fracassado que não aceitou as regras da democracia representativa, achando que a diferença de mais de três milhões de votos é uma bobagem. Ao prometer, em suas encenações teatrais (naquilo que Mino Carta chamou de “ópera bufa”), que faria oposição sistemática a Dilma e ao PT, Aécio, porta-voz do PSDB, de seus aliados e de seus simpatizantes da direita ultraconservadora, declarou explicitamente que ele e os que ele representa não se importam com a “res publica”.

            Ficou bem explícito na “ópera bufa” de Aécio Neves que a mentalidade da casa-grande ainda prevalece no âmbito das elites brasileiras, que continuam tratando os demais brasileiros como meros habitantes de uma senzala. Quem se opôs a tal visão no passado foi chamado de comunista. Agora, a moda é acusar de serem “bolivarianos” aqueles que resistem em aceitar o jogo sujo dessas elites. Hoje – diz Mino Carta (Carta Capital, 12/11/14, p. 20), a palavra mofada – comunismo – é substituída por “bolivariano”.

            E o pior de tudo – continua Mino Carta – é que, entre aqueles que enxergam “bolivarianos de tocaia” por toda parte, estão pretensos intelectuais, artistas, jornalistas e até magistrados. “O besteirol anda solto a serviço do mofado elitismo golpista e exibe o atraso cultural do País”, diz enfaticamente Mino (ibidem). É como se voltássemos a crer que comunistas devoram criancinhas. Isso tudo poderia ser uma piada se não fosse tão trágico. Poderia se admitir isso de algumas pessoas, mas não de quem frequenta universidades, ocupa suas cátedras ou dos que se autoproclamam “formadores de opinião pública”.

            A quase totalidade da oposição é formada de hipócritas e ama cultivar a hipocrisia. É incapaz de olhar para trás e de ver o estrago que já causou ao país no passado. Faz discurso demagógico, mas “na prática a teoria é outra”. Ainda pensa que somos todos idiotas. Tudo isso, e mais outras coisas, coloca necessariamente a oposição na cesta do conservadorismo e da direita. Uma oposição barulhenta, formada por senhores e poucas madames que ainda tratam o Brasil como uma senzala fustigada pela casa-grande. Como no passado, ficam furiosos e querem fustigar os que não aceitam mais ficar na senzala, a serviço desses senhores das elites. A reação histérica de alguns representantes dessas elites à legítima e democrática eleição de Dilma Rousseff revelou claramente essa mentalidade escravocrata, coronelista e golpista que afeta a maioria da oposição e dos que a ela se aliam. Não há como não dar razão a José Saramago, o qual, numa entrevista a um jornal, em 25/10/1995, fez a seguinte afirmação: “Estamos cada vez mais cegos, porque cada vez menos queremos ver. Todos nós somos cegos da Razão”.

domingo, 2 de novembro de 2014

Após as eleições


Por que Dilma foi reeleita?

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Assentada a poeira das eleições e acalmados os ânimos acirrados, vale uma reflexão mais racional. A pergunta que dá título ao presente artigo pode parecer simplista e a resposta também poderia parecer óbvia. Mas, na verdade, não é assim. Se fôssemos seguir a lógica simplista se diria, de imediato, que Dilma ganhou porque a maioria dos brasileiros preferiu assim. Embora isso seja verdade, cabe fazer uma análise mais profunda do acontecimento, uma vez que isso é bom para a democracia.

            Dilma, o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados venceram as eleições para a Presidência da República porque nenhum outro partido foi capaz de apresentar uma alternativa mais séria e mais ousada. Nenhum outro partido foi capaz de apresentar um projeto que, na prática, fosse viável e factível. Com todas as deficiências que conhecemos, o projeto do PT, de Lula e de Dilma é o único que, nos últimos doze anos, vem respondendo ao grande desafio de conciliar desenvolvimento e distribuição de renda. Quem tem boa memória e honestidade intelectual, capaz de fazer análise crítica da realidade, não poderá deixar de admitir quanto o Brasil melhorou de 2002 para cá.

Apenas um exemplo bem simples para ilustrar o que estou dizendo. Dias atrás, bem antes do segundo turno das eleições, conversava com uma senhora muito simples, mas de uma grande inteligência e capacidade aguçada de análise crítica. Coisas que faltam em muitos “intelectuais”! Ela afirmava categoricamente que a vida do povo tinha melhorado com os governos de Dilma e Lula. Quis insistir no assunto e pedi que ela me desse um exemplo de que o Brasil tinha melhorado nos últimos doze anos. E ela, sem pestanejar ou gaguejar, me respondeu categoricamente: “Há um bom tempo ninguém mais passa na porta da minha casa para pedir comida ou esmola”.

O exemplo é bem simples, mas clareia bastante o que estou querendo dizer. O projeto do PT e seus aliados, que Lula e Dilma coordenaram nos últimos doze anos, não é perfeito e nem poderia ser, pois não há, no campo da política, nenhum projeto com essa característica, mas é inegável a sua contribuição para a melhoria significativa do nosso país. Querer negar isso é tapar o sol com a peneira e viver fora da realidade, na ilusão. E porque os demais partidos foram incapazes de apresentar projetos sérios que superassem os do PT e de seus aliados e realmente convencessem a população, Dilma venceu as eleições e foi reeleita.

Vejamos rapidamente os outros projetos. O do PSDB, apoiado pelo DEM (ex-PFL, ex-PDS, ex-Arena, ex-UDN, partido da ditadura de 1964) e por alguns nanicos, já conhecemos o bastante. Além de ter leiloado o Brasil no período em que governou o país, ser campeão da corrupção, esse projeto reuniu o que há de mais asqueroso e nojento na política brasileira. Mentes inteligentes e pessoas éticas sabem disso e jamais votariam numa coligação tão representativa da banda podre da elite brasileira e dos setores mais retrógados que há quinhentos anos massacram os pobres e os pequenos desse nosso país.

Os partidos que ainda se autodenominam “de esquerda” (PSOL, PCO, PSTU, PCB) foram incapazes de se unir para formar uma alternativa e para apresentar propostas sérias e viáveis. Com um discurso atrasado, que desconhece a queda do muro de Berlim e do socialismo real, não conseguiram convencer a população brasileira e nem mesmo arrastar para seu lado os “indignados” que foram às ruas no mês de junho do ano passado. Brigas, futricas internas, personalismos, falta de realismo e outros males impediram a possibilidade de uma alternativa real que desse ao país a oportunidade de mudar. Se as esquerdas realmente tivessem se organizado e tivessem se unido, teríamos realmente uma alternativa para o futuro do país. Mas não foi o que aconteceu.

Quanto ao PSB, partido com uma longa tradição democrática e de muita luta, sua proposta não foi original. Era um plágio remendado do que o PT e seus aliados já vinham realizando. Não tinha novidades significativas a apresentar para os eleitores. O povo logo percebeu. E preferiu o original, renegando o clone remendado. Esse partido criou a ilusão em torno de uma figura mítica, Eduardo Campos, e se esqueceu de que tinha sido amparado e projetado até pouco tempo atrás pela sua ligação com o Partido dos Trabalhadores. Esqueceu-se de que essa era a sua fragilidade. Ao atacar o PT apresentou-se ao povo brasileiro como partido oportunista e traidor. E a cultura brasileira ainda não perdoa oportunismo e traição, mesmo que seja em favor de uma nobre causa.

Com a morte de Eduardo Campos a proposta do partido foi detonada pela imposição do personalismo de Marina Silva. Essa, ícone da incapacidade de agregação – já que num longo período de tempo não conseguiu atrair um número suficiente de eleitores para formar um partido – levou o PSB ao naufrágio. E, no segundo turno das eleições, ao se vender ao projeto do PSDB, Marina revelou sua face perversa, ambígua, antiética e levou consigo o partido que representava. Ficou evidente para os eleitores éticos do PSB que a proposta não era verdadeira e nem real; que o partido tinha se rendido a Marina Silva e traído a sua história de luta e a sua tradição democrática.

Os demais partidinhos que apresentaram candidatos não tinham propostas sérias, viáveis e reais. O Partido Verde, por exemplo, com a candidatura de Marina Silva, já tinha perdido a credibilidade nas eleições de 2010. E, ao apoiar Aécio Neves, no segundo turno de 2014, demostrou sua irresponsabilidade e sua falta de ética, deixando transparecer que a “sustentabilidade” por ele pregada é aquela das grandes empresas e das multinacionais que, hoje, querem ganhar muito dinheiro com o “discurso do verde”. Os demais, quase todos representativos da ultradireita, preconceituosos, racistas, homofóbicos, não tinham propostas sérias e nem credibilidade suficiente para mobilizar a população brasileira.

Restou, portanto, o projeto do PT e seus aliados que, apesar da perseguição desonesta, antiética, constante, sistemática, cruel e injusta da grande mídia, ainda convenceu a população. Apesar de suas fragilidades – que apontarei em outra ocasião – foi aquele que conseguiu convencer a maioria dos eleitores e das eleitoras.

Estou convencido de que a alternância no poder é algo sadio para a democracia. Mas quando os partidos são incapazes de apresentar alternativas sérias, viáveis, éticas, factíveis, só resta à população optar pelo que ainda há de melhor. Mesmo que o melhor seja sinônimo de continuidade. E a proposta do PT ainda foi capaz de provar que era a melhor de todas. Espero que os partidos de esquerda aprendam a lição, deixem de lado os personalismos e as ambições, e sejam capazes de oferecer ao povo brasileiro uma alternativa séria e viável nos próximos anos. Mas, para que isso aconteça, terão que sair da ilusão, não negar o óbvio, unir-se numa grande frente, de modo a angariar a simpatia das eleitoras e dos eleitores brasileiros.

Enquanto isso não acontecer, só contribuirão para a polarização das eleições, com o risco sério de que a face nojenta da política brasileira, hoje representada pelo PSDB e seus aliados, possa de novo tomar o poder. Quanto ao PSB, partido tradicionalmente de esquerda, terá que se redimir, admitindo publicamente que seu apoio à candidatura de Aécio Neves foi uma traição dos ideais democráticos, e pedir perdão ao povo brasileiro. Mas para que isso aconteça será indispensável expurgar de seus quadros a figura ambígua e desacreditada de Marina Silva. Se ela permanecer no partido, sua credibilidade terá chegado ao fim. Não há outro caminho, não há outra alternativa.

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