segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Realidade


Quando o diálogo é impossível

 José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

                Nos últimos dias tem se falado muito em diálogo, especialmente nos meios políticos. Sem dúvida alguma o diálogo é fundamental para a convivência pacífica entre as pessoas e os grupos humanos. Sem diálogo não conseguimos caminhar na direção de uma meta que, indo além dos interesses pessoais e corporativos, aponte o bem comum, ou seja, o bem de todos os cidadãos e de todas as cidadãs.

                A palavra “diálogo” vem do grego, e literalmente significa “por meio da (dia) palavra (logos)”. Dialogar, portanto, significa buscar o entendimento da realidade através da emissão de palavras, ou seja, através da conversa. Duas ou mais pessoas se encontram e tentam entender o mundo, e o que está acontecendo nele, através da atitude de conversar, através da expressão de opiniões e de ideias.

                Porém, para que haja verdadeiro diálogo é indispensável que, antes dele e durante a sua realização, sejam respeitados alguns pressupostos fundamentais. O primeiro desse pressuposto é a existência de sujeitos autônomos e verdadeiramente livres. Não pode existir diálogo autêntico entre pessoas subjugadas e escravas, que não possuem opinião própria e o suficiente conhecimento para formar uma opinião. Essa falta de liberdade e de autonomia pode ser provocada, hoje, por diversos fatores. Talvez o mais forte deles seja a influência da grande mídia, a qual não educa para a autonomia e a liberdade, mas, com suas estratégias maquiavélicas, condiciona as pessoas. Produto dessa lavagem cerebral midiática é a “cultura consumista” que leva a pessoa, em nome da satisfação imediata dos desejos, a se submeter a muitas formas de escravidão. O consumidor obsessivo e voraz não está em condições de dialogar.

                Um segundo pressuposto é a atitude de buscar juntos a verdade, em vista da justiça e do bem comum. Não pode haver diálogo se os que querem dialogar, conversar, não estão motivados por esse princípio. É impossível dialogar quando alguém mente, segue a mentira, e busca, na conversa, vantagens pessoais egoístas. Um desafio para o momento atual, uma vez que se disseminou entre nós a mentira e o espírito de competição. Um terceiro pressuposto para o diálogo é aquilo que eu chamo de escuta amorosa do outro ou da outra. Para dialogar é preciso que os dialogantes estejam desarmados, sem preconceito, dispostos a acolher com humildade e simplicidade aquela parte de verdade que está presente na fala da outra pessoa. Se alguém parte do princípio de que está sempre com a razão e de que a verdade está sempre do seu lado, o diálogo torna-se impossível.

                A partir disso pode-se colocar um quarto pressuposto. É preciso levar a sério o que a outra pessoa diz. Não há como dialogar quando alguém não leva a sério a fala do outro, quando alguém despreza o que ele diz, ou até mesmo ridiculariza suas opiniões e suas palavras. No diálogo é preciso sempre acreditar na palavra da outra pessoa, independentemente do que ela é e do que ela diz. Essa atitude abre caminho para um quinto pressuposto: disponibilidade para rever os próprios pontos de vista, as próprias convicções, a partir da busca em comum da verdade, da escuta amorosa e da seriedade com a qual se ouve a outra pessoa. O diálogo torna-se impossível e infecundo quando um dos dialogantes não está disposto a mudar seus pontos de vista, a partir do que escuta e a partir da descoberta de novas verdades que aparecem no diálogo.

                Por fim, um último pressuposto para o diálogo é a busca da lógica e da racionalidade. Não há como dialogar quando se foge desse princípio, quando não se quer submeter o próprio pensamento e a própria conversa às exigências do rigor da lógica e da razão. Trata-se, é claro, não de um racionalismo estúpido, que despreza a espontaneidade e a naturalidade do diálogo, mas daquele comportamento que se recusa a reconhecer o óbvio e o real. Aquela conversa alimentada por fantasias, por ilusões, por fugas da realidade e do mundo real. Quando a conversa deixa de ser terrena, concreta, e se desloca para “as nuvens”, ela deixa de ser diálogo, torna-se delírio.

                Do que foi dito pode-se deduzir que o diálogo se torna impossível quando se fazem presentes três elementos. O primeiro deles é a arrogância ideológica. De forma consciente e propositada a pessoa se coloca no âmbito do diálogo como aquele que detém a verdade absoluta e a razão total. E faz isso por uma questão ideológica, ou seja, porque está convencida não tanto de que o que ela pensa é verdade absoluta, mas porque o simples ato de dialogar já significaria ceder; significaria minar as bases dos seus privilégios e dos privilégios do grupo ao qual pertence. Para o arrogante, escutar e, pior ainda, ceder são sinônimos de fraqueza.

                O segundo elemento que impede a realização de um diálogo autêntico é a ignorância, isto é, a falta de conhecimento suficiente de uma determinada realidade. Muitas pessoas são intransigentes e bloqueiam o diálogo porque não são detentoras do saber. Não só o saber científico, mas a sabedoria ou sabor da vida, a experiência do viver. Algumas pessoas não são culpadas de serem ignorantes. A vida e a sociedade lhes negaram o direito de saber, o direito de conhecer. Outras, porém, são ignorantes porque, mesmo tendo a oportunidade de conhecer, se recusam a adquirir aquela sabedoria necessária à vida. E se recusam porque o conhecimento comporta necessariamente a obrigação de mudar de vida, de posição e de opinião. Por isso preferem permanecer na ignorância.

                O terceiro elemento que torna o diálogo impossível é a debilidade mental. Existem pessoas que, por diversas razões, inclusive por deficiências psicológicas, são incapazes de compreender determinados raciocínios e determinadas sentenças. A sua capacidade de entendimento é muito pequena e, por mais que alguém tente explicitar bem o seu pensamento, essas pessoas são incapazes de compreender o que o outro fala. Tais pessoas, de um modo geral, não podem ser culpabilizadas por esse comportamento, uma vez que tal situação não depende da simples vontade ou do simples querer. É algo bem mais complexo do que se pensa.

Geralmente, nas instituições, existem muitas dessas pessoas ocupando cargos de gestão e de direção. E são colocadas ali de propósito: para que não entendam nada e, não entendendo, deixem as coisas como estão. Por serem débeis mentais a única coisa que sabem fazer é defender com unhas e dentes a instituição e o status quo. O diálogo com tais pessoas é impossível. E as instituições gostam disso porque têm nessas pessoas defensores ferrenhos e não precisam enfrentar diretamente o grande público. O gestor débil mental é o “para-raios” que captura e desvia para o nada toda possível investida contra a instituição.

                Diante desta situação de impossibilidade de diálogo, o que podemos fazer? Antes de tudo é preciso silenciar, mas sem ceder à tentação de sucumbir à arrogância, à ignorância e à debilidade. Existem pessoas com as quais é inútil tentar dialogar. Seria perda de tempo, ou, como diz um ditado napolitano, “dar banho em porco: perde-se tempo, água e sabão”. O silêncio, porém, não deve ser sinônimo de omissão. Terá que ser um silêncio ativo que leve a outra pessoa a perceber que a atitude de calar-se é um ato de rebeldia e de protesto diante do que está acontecendo. Lembro-me aqui do silêncio dos torturados diante dos seus algozes, do silêncio de Cristo diante de Herodes e de Pilatos.

                Às vezes é preciso silenciar para tentar salvar uma boa convivência. Viver num permanente conflito com determinadas pessoas nem sempre é sadio e agradável. Tal atitude gera grandes tensões, provoca doenças e não resolve nada. É claro que, muitas vezes, será preciso enfrentar o conflito para não sermos omissos e para que o nosso silêncio não represente uma conformação com a injustiça e a maldade. Mas, dependendo do caso, a melhor resposta é aquela que não se dá. O melhor diálogo é recusar-se a responder às provocações de determinadas pessoas.

                Uma terceira atitude, diante da impossibilidade do diálogo, é ficar sempre atento às possíveis brechas que podem aparecer e oferecer a oportunidade de iniciar um diálogo. Muitas vezes criam-se situações que podem ser uma ocasião para dialogar. A vida sempre tem as suas surpresas. Por mais que alguém seja intransigente, de repente, a vida se lhe apresenta com algumas lições e alguns desafios, obrigando-a a buscar o diálogo com os outros.

                Por fim, uma quarta atitude seria aquela de manter-se sempre aberto e vigilante. Antes de tudo para verificar se a arrogância, a ignorância e a debilidade não estão dentro de nós mesmos. Infelizmente temos sempre a tendência de achar que o problema está no outro ou nos outros. Com isso nos recusamos a olhar para dentro de nós mesmos. E, com frequência, pode acontecer que a dificuldade para dialogar esteja mais em nós do que nos outros. Além disso, a abertura e a vigilância nos permitem viver antenados, ou seja, atentos ao que acontece ao nosso redor, buscando sempre uma ocasião para dialogar. E quantas vezes perdemos a chance de iniciar o diálogo porque não fomos capazes de perceber as chances que se apresentaram a nós; porque nos fechamos em nós mesmos e não descobrimos tantas oportunidades que tivemos para “puxar uma boa conversa”.

                Tudo isso poderia ser resumido numa frase: para dialogar é preciso amar. “O diálogo é intersubjetividade, é, por isso mesmo, ‘situado e datado’. Se não há um profundo amor ao homem e ao mundo, não há diálogo [...]. Porque o amor é ato de coragem, nunca de medo, é compromisso assumido com o homem concreto no mundo e com o mundo [...]. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo o homem oprimido e vencido, não posso dialogar” (Paulo FREIRE). E parece-me que a falta de amor é a razão principal da falta de diálogo no mundo de hoje. Por trás da falta de amor esconde-se a arrogância, a ignorância e também certas debilidades que atravancam o diálogo. A falta de amor gera a desesperança e a crença de que é inútil dialogar. “Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não há diálogo. Seu encontro é vazio e estéril, burocrático e fastidioso” (Paulo FREIRE).

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