quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Machismo brasileiro


Bolsonaro: ícone do brutal machismo brasileiro

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            As brasileiras e os brasileiros, que ainda não perderam a lucidez e o senso ético, recentemente ficaram chocados e indignados com um pronunciamento do deputado federal fluminense Jair Bolsonaro, o qual da tribuna da Câmara ofendeu uma colega deputada, insinuando o desejo de estuprá-la, embora “ela não merecesse”. Com isso o deputado, já conhecido pelo seu destempero, pela sua apologia a ditaduras e a ditadores, pela sua falta de ética, pelo seu espírito fascista e nazista, ofendeu todas as mulheres brasileiras e fez apologia ao crime de estupro.

            O comportamento antiético, imoral e nazista do deputado Bolsonaro causou, como disse antes, indignação entre aquelas pessoas sérias e éticas, embora não se possa esperar outra coisa de alguém como ele. Porém, é preciso dizer com toda sinceridade que o seu comportamento, típico de bandido, reflete nada mais e nada menos que o machismo que caracteriza a maioria absoluta dos homens do nosso país. Os dados a respeito da violência contra a mulher no Brasil, e que estão à nossa disposição em muitos sites oficiais e sérios, são alarmantes. Cerca de 77% das mulheres maltratadas afirmam terem sido violentadas ou agredidas semanalmente ou até diariamente. A violência, geralmente, é praticada por homens a elas ligados: parceiros, maridos, parentes e até filhos. Boa parte delas são assassinadas. Entre 1980 e 2010 foram assassinadas 92 mil mulheres no Brasil, de modo que se pode falar, sem medo de errar, de um verdadeiro feminicídio.

            O machismo do brasileiro se manifesta também de outras formas. Na atitude arrogante de querer “tirar satisfação”, de “não levar desaforo para casa”, de humilhar os outros, principalmente aqueles que dependem de nós, de não aceitar a perda ou a derrota, como aconteceu recentemente com o senador Aécio Neves, que não queria admitir a sua derrota para uma mulher.

            Trata-se, pois, de um elemento cultural. De norte a sul e de leste a oeste de nosso país os homens, de um modo geral, são machistas. É claro que, quando consultados, a quase totalidades deles têm um discurso liberal e se opõem à violência contra a mulher. Mas, na prática, a teoria é outra. A maioria absoluta deles enxergam a mulher apenas como objeto deles. A mulher é objeto de cama e mesa e uma serviçal que deve realizar todas as tarefas e todos os caprichos deles.

Existem, inclusive, homens cujo discurso político parece revolucionário, mas na hora de se relacionar com a mulher extravasam todo o seu machismo e a sua agressividade. Para tais “revolucionários” a mulher deve ficar em casa realizando tarefas domésticas, lavando roupas e pratos, limpando casa, preparando para eles as refeições e cuidando dos filhos. Ao chegarem em casa, querem encontrar tudo pronto e à disposição deles. Sentam-se majestosamente no sofá de casa para tomar uma “cervejinha”, ver televisão, enquanto a mulher prepara tudo para eles. São incapazes, por exemplo, de ajudar nas tarefas domésticas, como preparar as refeições, trocar uma fralda, lavar os pratos ou arrumar uma mesa.

Há, ainda, a violência contra a mulher, praticada em nome de Deus e da religião. Muitos, ingenuamente ou idiotamente, pensam que a violência religiosa contra a mulher só existe nos países islâmicos. Isso é pura ignorância. O Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), que tem sede em São Leopoldo (RS), realizou recentemente uma pesquisa, já publicada em forma de livro, sobre o assunto. E, por incrível que pareça, a pesquisa constatou um número altíssimo de violências praticadas contra a mulher com motivação meramente religiosa.

Homens de diferentes Igrejas cristãs, fazendo uma leitura literal e fundamentalista de certos textos da Bíblia, consideram normal a agressão à mulher que não quer ser “submissa”. Para eles a Bíblia ensina que a mulher deve sujeitar-se ao homem e aquelas que não se submetem deve ser punidas. É claro que, como disse antes, trata-se de uma leitura enviesada e fundamentalista da Bíblia. Quem estuda seriamente os textos sagrados do judaísmo e do cristianismo sabe que isso não é verdade. Porém, o fato é real e, considerando que quase 90% dos brasileiros declaram-se adeptos do cristianismo, pode-se deduzir que boa parte dos agressores, senão a totalidade, é formada por homens cristãos. O que é grave e muito sério para uma religião que tem como essência o amor ao próximo.

Lamentavelmente boa parte das próprias mulheres introjetou esse machismo e chega a achar normal a agressão praticada por homens. Pode parecer algo paradoxal. Mas é o que vemos diariamente nos comportamento de muitas delas, aceitando passivamente a ação dos homens e submetendo-se resignadamente aos que eles praticam. Vejo, por exemplo, pouca ação e reação das mulheres diante do que a grande mídia e a propaganda fazem com elas. Embora sejam maioria no país, as mulheres não votam em mulheres. O próprio Bolsonaro deve ter sido eleito graças ao voto de muitas mulheres. Após o seu pronunciamento infame, feito da tribuna da Câmara, ele foi defendido publicamente por uma jornalista, já conhecida de todos nós por seus comentários racistas, homofóbicos, machistas e preconceituosos. Eu mesmo tenho tido dificuldades em minhas aulas universitárias para convencer as acadêmicas acerca do machismo do brasileiro e da exploração à qual a mulher é submetida diariamente nos programas televisivos e nas propagandas. Elas acham isso normal!

Ora, se o problema é cultural, só pode ser resolvido através de ações que mudem o comportamento cultural. E a ação que resume todas as outras é a educação. Mas, neste campo, os desafios são muitos, pois as instituições que podem e devem fazer isso estão todas em crise. A família não consegue mais dar orientações sérias aos filhos, e, com a presença de pais machistas, isso é quase impossível. Os políticos, na sua grande parte conservadores e machistas, se omitem e silenciam. Foi revoltante acompanhar os nossos parlamentares por ocasião do pronunciamento de Bolsonaro. Excetuando-se as parlamentares mulheres e alguns outros deputados e senadores, a omissão e o silêncio foi total. E, diz o adágio popular, “quem cala, consente”.

Na grande mídia, golpista por natureza, o silêncio foi amplo e total. Essa mídia que vive atrás de escândalos, que vive obcecada por corrupção, não trouxe para a pauta a corrupção escandalosa de Bolsonaro. Houve maior discussão apenas na mídia pública e nas mídias alternativas. Nas escolas se repercute a cultura machista, de modo que os meninos praticamente não recebem nenhuma orientação sobre isso. Nas Igrejas certamente o clima deve ser o mesmo, pois, salvas algumas poucas exceções, elas são machistas por vocação e, em pleno século XXI, ainda excluem as mulheres das instâncias de poder e de decisão.

Porém, diante de tão grave escândalo, diante da atitude descabida, antiética e imoral do deputado Bolsonaro, é hora de acordarmos, pois ele representa o que há de mais infame, sujo e nojento nas sociedades e nas culturas brasileiras. É hora de nos indignarmos e partirmos para ações concretas que contribuam para uma educação séria e que ajudem a eliminar comportamentos desvairados, desrespeitosos e desumanos como esse que presenciamos recentemente. Não podemos permanecer indiferentes e alheios a atos dessa natureza. Precisamos nos indignar, protestar e realizar pequenas ações que quebrem a arrogância e a intolerância, a agressão, o machismo e a violência contra as mulheres e contra todas as pessoas indefesas de nossa sociedade. Não podemos mais esperar. Se insistirmos em esperar será tarde demais e num breve espaço de tempo essa violência estará atingindo as nossas famílias e as nossas pessoas. Aliás, Bolsonaro, ao agir de forma tão truculenta, já agrediu a todas as mulheres brasileiras. Consequentemente, agrediu a todos nós.

É preciso, como dizia Paulo Freire a mais de quarenta anos atrás, desmistificar a realidade, ou seja, enxergar o que está acontecendo e agir, não ficando de braços cruzados. É preciso contribuir para a educação das pessoas. “Uma das grandes tarefas da educação libertadora é convidar as massas a tornarem-se utópicas, isto é, denunciantes” (Paulo Freire). E denunciar não é apenas apontar o que está acontecendo, mas construir um novo idealismo, ou seja, propor um novo modo de ser e de agir para a humanidade, uma nova forma de presença “que me convida a fazer a história que é minha, que é a história dos homens” (Paulo Freire).

domingo, 7 de dezembro de 2014

Conservadorismo político


Somos um povo quieto, um “povo dos ratos”

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            As análises que se seguiram às eleições de outubro de 2014 dão conta de que o Congresso (Câmara e Senado) eleito neste pleito é o mais conservador desde a ditadura de 1964. Os analistas chegam a afirmar que, com este tipo de Congresso, será muito difícil avançar nas conquistas dos direitos humanos e no respeito pelo ser humano no Brasil. O conservadorismo se manifestou logo depois das eleições, com reações contra a eleição de Dilma Rousseff, com gente pedindo a volta da ditadura.

            Diante do acontecido, ficam algumas perguntas: depois das manifestações de junho de 2013, aqui no Brasil, como entender que o povo brasileiro tenha eleito um Congresso tão conservador e reacionário? Onde estiveram, durante as eleições, os “manifestantes indignados”? Por que não elegeram pessoas mais avançadas e mais ousadas? Ou, pelo menos, por que não houve um “voto de protesto” que pudesse até colocar em descrédito o resultado final das eleições? Como justificar que Aécio Neves, ícone e “para-raios” desse conservadorismo, tenha recebido tantos votos? As manifestações de junho do ano passado, eram ou não eram expressão de desejo de mudança? Pois, o que se esperava era que, a partir desses manifestantes e das manifestações, houvesse uma reviravolta na escolha dos candidatos ao Legislativo Federal e Estadual e a eliminação do conservadorismo político que, segundo as palavras de ordem das próprias manifestações, estariam levando o país ao caos.

            Nestes dias tive a oportunidade de revisitar os escritos de Franz KAFKA. Depois da releitura de alguns textos desse autor, pude entender algumas coisas que aconteceram recentemente aqui no Brasil. Kafka, que nasceu em Praga e viveu entre 1883 e 1924, conviveu em um dos períodos mais conturbados da Europa, tendo assistido a todo o drama da Primeira Guerra Mundial. Por isso foi muito crítico em seus escritos em relação à angústia do ser humano moderno, à questão da existência, das diferentes formas de autoritarismo e de poder. O texto que mais me chamou a atenção e que me ajudou a entender um pouco o atual contexto brasileiro foi o seu livrinho Um artista da fome (Porto Alegre: L&PM, 2010), de modo particular o conto “Josefine, a cantora ou O povo dos ratos”.

            De acordo com Kafka, “a entrega incondicional é quase desconhecida de nosso povo, que acima de tudo ama a astúcia inofensiva, os cochichos pueris, as fofocas inocentes, que põem apenas os lábios em movimento; um povo assim não tem condições de entregar-se incondicionalmente” (KAFKA, p. 57). A história dos últimos 500 anos do Brasil não foi nada mais que um esforço das elites brasileiras no sentido de criar no povo essa “astúcia inofensiva”, de modo que ele pudesse se conformar com tudo, mesmo porque, com a prevalência aqui do elemento religioso, tudo que acontece é “vontade de Deus”.

O nosso sistema sempre foi brutal e marcado pela violência institucionalizada. Por causa disso, e ao mesmo tempo, a vida foi sempre dura para a maioria absoluta dos brasileiros. E, diante de uma vida dura, “cada dia traz consigo surpresas, inquietações, esperanças e medos, de modo que ninguém, sozinho, seria capaz de suportar tudo isso se não tivesse, dia e noite, o apoio dos companheiros” (KAFKA, p. 54-55). Acontece, porém, que, na prática de um sistema onde a violência é institucionalizada, ninguém é companheiro de ninguém e, como diz o mesmo Kafka, o fardo termina sobre os ombros de um só, ou seja, do indivíduo isolado e solitário.

            Nesse contexto, o sistema manipula, divide e desvia o olhar do povo para um bode expiatório. No nosso caso o bode expiatório foi o governo. As elites, através da grande mídia, exploraram as manifestações, impedindo que o povo enxergasse que por trás do problemas brasileiros estão exatamente elas. E, como nos mostra a Antropologia, diante de um bode expiatório, todos perdem a razão e não percebem o óbvio. Ou seja, “ficam todos quietos como ratos” (KAFKA, p. 53) e incapazes de tomar a devida distância para fazer uma análise correta da realidade, pois o desvio do olhar para o bode expiatório torna as pessoas impulsivas e irracionais. De fato, lembra o mesmo Kafka, uma verdadeira oposição “só se faz à distância”, isto é, quando se é capaz de olhar os fatos de maneira racional e objetiva. Os impulsos emocionais não ajudam em nada.

            A partir disso surgem, então, os “salvadores da pátria”, os quais, manipulando os fatos, apresentam-se como aqueles que vão resolver todos os problemas. E o povo, “habituado a sofrer, negligente consigo próprio, rápido nas decisões, conhecedor da morte” (KAFKA, p. 59), deixa-se enganar facilmente por esses, sem saber que tal engano vai custar-lhe a vida.

            Os “salvadores da pátria” geram divisão e isolamento e anulam a ação do povo, pois “ninguém conseguiria fazer sozinho o que, a esse respeito, todo o povo é capaz” (KAFKA, p. 58). Dividir sempre foi a melhor forma que os impérios encontraram para dominar e oprimir. Foi o que fizeram as elites brasileiras no ano passado, durante as manifestações, através da intervenção da mídia golpista que está nas mãos delas. Simplesmente esvaziaram a dimensão revolucionária das manifestações, canalizando tudo para ataques estéreis e histéricos ao governo. Diante dessa situação o povo recua e volta ao de sempre: o jeitinho, que, aliás, diga-se de passagem, não é somente uma prática dos brasileiros, mas um dado universal, uma vez que as várias formas de ameaças “que pairam sobre nós deixam-nos mais silenciosos, mais humildes” e, infelizmente, “mais propensos aos caprichos” (KAFKA, p. 60).

            Tudo isso concorre para uma “certa infantilidade perene” e uma “velhice prematura” (KAFKA, p. 63-64) no campo da política. O povo se cansa de lutar, se conforma e sonha relaxado numa “pausa necessária entre as batalhas” (KAFKA, p. 65), acreditando piamente que os “salvadores da pátria”, com seus discursos demagógicos e altamente conservadores, vão resolver todos os problemas. E “deitado em berço esplêndido”, nesta maldita, mas “aconchegante cama” (Ibidem) o povo permanece obtuso e enganado, decidindo sempre contra ele mesmo (KAFKA, p. 22).

            Só resta, então, colocar a culpa nos outros, no bode expiatório, não assumindo cada um e cada grupo a sua parcela de responsabilidade. Inerte, o povo não toma nenhuma decisão e tende a supervalorizar “o momento presente em que as decisões aparecem” (KAFKA, p. 25). E isso porque, nesse contexto do qual estamos falando, ele é incapaz de enxergar as coisas como elas são, embora saibamos que “as coisas na verdade são simples, todos podem compreendê-las ao chegar mais perto” (KAFKA, p. 24). Mas o segredo está aqui: chegar mais perto, ou seja, vê-las por dentro, com um olhar crítico e perspicaz. Todos, então, se conformam com as aparências. Só que “as aparentes mudanças nessa situação ao longo do tempo na verdade não são mudanças” (KAFKA, p. 25). E uma das formas que os sistemas e as elites encontram para não mudar nada é fazendo mudanças aparentes, isto é, enganando o povo.

            Nesse contexto alguns políticos ficam fazendo um tipo de oposição idiota, reduzido a puras lamentelas e reclamações estéreis, muito bem manipuladas pela mídia golpista, uma vez que “entre nós são poucos os que conseguem ficar de boca fechada” (KAFKA, p. 59). Enquanto isso, tudo permanece na mera fachada. O povo continua se virando, se salvando por si próprio, dando duro, e os “salvadores da pátria” apresentando-se como aqueles que estão resolvendo os problemas do país.

            Há no mundo atual, e não somente no Brasil, uma certa tendência a supervalorizar o conservadorismo, as ideologias de direita e os fundamentalismos, embora não faltem sinais de esperança, como os governos sul-americanos de esquerda e alguns movimentos na Europa e nos resto do mundo. Essa tendência, dizem os analistas, pode significar uma séria ameaça para a humanidade, que já sofreu tanto por causa disso. O “povo segue em seu caminho” de forma tranquila, “sem nenhuma decepção visível, altaneiro, uma massa serena que, a bem dizer, mesmo que as aparências sugiram o contrário, só é capaz de dar, jamais de receber” (KAFKA, p. 75). “Há vezes em que nosso povo tão sensível não se deixa sensibilizar” (Ib., p. 68). Por isso já está na hora de nos unirmos em torno de algumas questões essenciais e de alguns valores fundamentais para promovermos uma reviravolta. Precisamos tomar conta de nós mesmos como adultos e não como crianças que “não têm tempo de ser criança” (KAFKA, p. 62-63). E, nesse contexto, somos muitos os que temos grandes e maiores responsabilidades e um dia a história vai nos cobrar. Não podemos apenas ficar rindo, fazendo piadas de nós mesmos, pois “ninguém ri diante de uma responsabilidade; rir de algo assim seria faltar ao dever”, mesmo porque “é o cúmulo da maldade o que os mais vis entre nós impingem” (KAFKA, p. 57-58) ao povo dos pobres e dos excluídos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Realidade


Quando o diálogo é impossível

 José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

                Nos últimos dias tem se falado muito em diálogo, especialmente nos meios políticos. Sem dúvida alguma o diálogo é fundamental para a convivência pacífica entre as pessoas e os grupos humanos. Sem diálogo não conseguimos caminhar na direção de uma meta que, indo além dos interesses pessoais e corporativos, aponte o bem comum, ou seja, o bem de todos os cidadãos e de todas as cidadãs.

                A palavra “diálogo” vem do grego, e literalmente significa “por meio da (dia) palavra (logos)”. Dialogar, portanto, significa buscar o entendimento da realidade através da emissão de palavras, ou seja, através da conversa. Duas ou mais pessoas se encontram e tentam entender o mundo, e o que está acontecendo nele, através da atitude de conversar, através da expressão de opiniões e de ideias.

                Porém, para que haja verdadeiro diálogo é indispensável que, antes dele e durante a sua realização, sejam respeitados alguns pressupostos fundamentais. O primeiro desse pressuposto é a existência de sujeitos autônomos e verdadeiramente livres. Não pode existir diálogo autêntico entre pessoas subjugadas e escravas, que não possuem opinião própria e o suficiente conhecimento para formar uma opinião. Essa falta de liberdade e de autonomia pode ser provocada, hoje, por diversos fatores. Talvez o mais forte deles seja a influência da grande mídia, a qual não educa para a autonomia e a liberdade, mas, com suas estratégias maquiavélicas, condiciona as pessoas. Produto dessa lavagem cerebral midiática é a “cultura consumista” que leva a pessoa, em nome da satisfação imediata dos desejos, a se submeter a muitas formas de escravidão. O consumidor obsessivo e voraz não está em condições de dialogar.

                Um segundo pressuposto é a atitude de buscar juntos a verdade, em vista da justiça e do bem comum. Não pode haver diálogo se os que querem dialogar, conversar, não estão motivados por esse princípio. É impossível dialogar quando alguém mente, segue a mentira, e busca, na conversa, vantagens pessoais egoístas. Um desafio para o momento atual, uma vez que se disseminou entre nós a mentira e o espírito de competição. Um terceiro pressuposto para o diálogo é aquilo que eu chamo de escuta amorosa do outro ou da outra. Para dialogar é preciso que os dialogantes estejam desarmados, sem preconceito, dispostos a acolher com humildade e simplicidade aquela parte de verdade que está presente na fala da outra pessoa. Se alguém parte do princípio de que está sempre com a razão e de que a verdade está sempre do seu lado, o diálogo torna-se impossível.

                A partir disso pode-se colocar um quarto pressuposto. É preciso levar a sério o que a outra pessoa diz. Não há como dialogar quando alguém não leva a sério a fala do outro, quando alguém despreza o que ele diz, ou até mesmo ridiculariza suas opiniões e suas palavras. No diálogo é preciso sempre acreditar na palavra da outra pessoa, independentemente do que ela é e do que ela diz. Essa atitude abre caminho para um quinto pressuposto: disponibilidade para rever os próprios pontos de vista, as próprias convicções, a partir da busca em comum da verdade, da escuta amorosa e da seriedade com a qual se ouve a outra pessoa. O diálogo torna-se impossível e infecundo quando um dos dialogantes não está disposto a mudar seus pontos de vista, a partir do que escuta e a partir da descoberta de novas verdades que aparecem no diálogo.

                Por fim, um último pressuposto para o diálogo é a busca da lógica e da racionalidade. Não há como dialogar quando se foge desse princípio, quando não se quer submeter o próprio pensamento e a própria conversa às exigências do rigor da lógica e da razão. Trata-se, é claro, não de um racionalismo estúpido, que despreza a espontaneidade e a naturalidade do diálogo, mas daquele comportamento que se recusa a reconhecer o óbvio e o real. Aquela conversa alimentada por fantasias, por ilusões, por fugas da realidade e do mundo real. Quando a conversa deixa de ser terrena, concreta, e se desloca para “as nuvens”, ela deixa de ser diálogo, torna-se delírio.

                Do que foi dito pode-se deduzir que o diálogo se torna impossível quando se fazem presentes três elementos. O primeiro deles é a arrogância ideológica. De forma consciente e propositada a pessoa se coloca no âmbito do diálogo como aquele que detém a verdade absoluta e a razão total. E faz isso por uma questão ideológica, ou seja, porque está convencida não tanto de que o que ela pensa é verdade absoluta, mas porque o simples ato de dialogar já significaria ceder; significaria minar as bases dos seus privilégios e dos privilégios do grupo ao qual pertence. Para o arrogante, escutar e, pior ainda, ceder são sinônimos de fraqueza.

                O segundo elemento que impede a realização de um diálogo autêntico é a ignorância, isto é, a falta de conhecimento suficiente de uma determinada realidade. Muitas pessoas são intransigentes e bloqueiam o diálogo porque não são detentoras do saber. Não só o saber científico, mas a sabedoria ou sabor da vida, a experiência do viver. Algumas pessoas não são culpadas de serem ignorantes. A vida e a sociedade lhes negaram o direito de saber, o direito de conhecer. Outras, porém, são ignorantes porque, mesmo tendo a oportunidade de conhecer, se recusam a adquirir aquela sabedoria necessária à vida. E se recusam porque o conhecimento comporta necessariamente a obrigação de mudar de vida, de posição e de opinião. Por isso preferem permanecer na ignorância.

                O terceiro elemento que torna o diálogo impossível é a debilidade mental. Existem pessoas que, por diversas razões, inclusive por deficiências psicológicas, são incapazes de compreender determinados raciocínios e determinadas sentenças. A sua capacidade de entendimento é muito pequena e, por mais que alguém tente explicitar bem o seu pensamento, essas pessoas são incapazes de compreender o que o outro fala. Tais pessoas, de um modo geral, não podem ser culpabilizadas por esse comportamento, uma vez que tal situação não depende da simples vontade ou do simples querer. É algo bem mais complexo do que se pensa.

Geralmente, nas instituições, existem muitas dessas pessoas ocupando cargos de gestão e de direção. E são colocadas ali de propósito: para que não entendam nada e, não entendendo, deixem as coisas como estão. Por serem débeis mentais a única coisa que sabem fazer é defender com unhas e dentes a instituição e o status quo. O diálogo com tais pessoas é impossível. E as instituições gostam disso porque têm nessas pessoas defensores ferrenhos e não precisam enfrentar diretamente o grande público. O gestor débil mental é o “para-raios” que captura e desvia para o nada toda possível investida contra a instituição.

                Diante desta situação de impossibilidade de diálogo, o que podemos fazer? Antes de tudo é preciso silenciar, mas sem ceder à tentação de sucumbir à arrogância, à ignorância e à debilidade. Existem pessoas com as quais é inútil tentar dialogar. Seria perda de tempo, ou, como diz um ditado napolitano, “dar banho em porco: perde-se tempo, água e sabão”. O silêncio, porém, não deve ser sinônimo de omissão. Terá que ser um silêncio ativo que leve a outra pessoa a perceber que a atitude de calar-se é um ato de rebeldia e de protesto diante do que está acontecendo. Lembro-me aqui do silêncio dos torturados diante dos seus algozes, do silêncio de Cristo diante de Herodes e de Pilatos.

                Às vezes é preciso silenciar para tentar salvar uma boa convivência. Viver num permanente conflito com determinadas pessoas nem sempre é sadio e agradável. Tal atitude gera grandes tensões, provoca doenças e não resolve nada. É claro que, muitas vezes, será preciso enfrentar o conflito para não sermos omissos e para que o nosso silêncio não represente uma conformação com a injustiça e a maldade. Mas, dependendo do caso, a melhor resposta é aquela que não se dá. O melhor diálogo é recusar-se a responder às provocações de determinadas pessoas.

                Uma terceira atitude, diante da impossibilidade do diálogo, é ficar sempre atento às possíveis brechas que podem aparecer e oferecer a oportunidade de iniciar um diálogo. Muitas vezes criam-se situações que podem ser uma ocasião para dialogar. A vida sempre tem as suas surpresas. Por mais que alguém seja intransigente, de repente, a vida se lhe apresenta com algumas lições e alguns desafios, obrigando-a a buscar o diálogo com os outros.

                Por fim, uma quarta atitude seria aquela de manter-se sempre aberto e vigilante. Antes de tudo para verificar se a arrogância, a ignorância e a debilidade não estão dentro de nós mesmos. Infelizmente temos sempre a tendência de achar que o problema está no outro ou nos outros. Com isso nos recusamos a olhar para dentro de nós mesmos. E, com frequência, pode acontecer que a dificuldade para dialogar esteja mais em nós do que nos outros. Além disso, a abertura e a vigilância nos permitem viver antenados, ou seja, atentos ao que acontece ao nosso redor, buscando sempre uma ocasião para dialogar. E quantas vezes perdemos a chance de iniciar o diálogo porque não fomos capazes de perceber as chances que se apresentaram a nós; porque nos fechamos em nós mesmos e não descobrimos tantas oportunidades que tivemos para “puxar uma boa conversa”.

                Tudo isso poderia ser resumido numa frase: para dialogar é preciso amar. “O diálogo é intersubjetividade, é, por isso mesmo, ‘situado e datado’. Se não há um profundo amor ao homem e ao mundo, não há diálogo [...]. Porque o amor é ato de coragem, nunca de medo, é compromisso assumido com o homem concreto no mundo e com o mundo [...]. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo o homem oprimido e vencido, não posso dialogar” (Paulo FREIRE). E parece-me que a falta de amor é a razão principal da falta de diálogo no mundo de hoje. Por trás da falta de amor esconde-se a arrogância, a ignorância e também certas debilidades que atravancam o diálogo. A falta de amor gera a desesperança e a crença de que é inútil dialogar. “Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não há diálogo. Seu encontro é vazio e estéril, burocrático e fastidioso” (Paulo FREIRE).

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Atualidade política


Oposição de palanque

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            No Brasil, atualmente, não temos oposição política séria. O que temos é uma oposição de palanque que não faz política no sentido verdadeiro da expressão, mas apenas barulho, correndo atrás de “escândalos”, como urubu atrás de carniça. Uma oposição sedenta de exibicionismo e dos holofotes da mídia, fazendo puro sensacionalismo.

            Oposição séria faz política, entendida como busca do bem comum, dos cidadãos e das cidadãs de uma nação. Já na Grécia antiga a política (politichè) era a arte de cuidar bem dos interesses da polis, ou seja, da cidade, o que significava cuidar bem do bem das pessoas que compunham as cidades-estados gregas. Neste sentido o conceito de política cultivado pelos gregos se aproxima bastante da visão romana, que falava da “res publica” (origem da palavra “república), isto é, da “coisa pública”, daquilo que é do interesse de todas as pessoas. Salvaguardadas as devidas proporções, pois sabemos o que gregos e romanos aprontaram, é possível afirmar que, tendo presente a origem da política e da república, ser político ou fazer política é um direito e um dever de todo cidadão ou cidadã. Fazer política é engajar-se e comprometer-se com projetos sérios, críveis e factíveis, em favor de todas as pessoas. Não é subir em palanques e tribunas para falar bonito, especialmente para criar sensacionalismo e pretender, com isso, angariar votos para si mesmo ou para o próprio partido.

            No Brasil, atualmente e com as devidas exceções, faz-se oposição por oposição. Ser oposição é sinônimo de atuação para aniquilar o partido adversário, independentemente de saber se isso vai contribuir ou não para o bem das cidadãs e dos cidadãos. Fazer oposição, especialmente para os partidos que representam as elites brasileiras e seus interesses, é colocar-se contra de qualquer jeito, de modo a criar sérios entraves para o partido (ou partidos) que está no poder. Os interesses da nação, do povo, ficam em segundo plano ou até mesmo não são considerados.

            A situação é ainda muito mais grave ao percebermos que os que atualmente fazem oposição política são quase todos pessoas sem credibilidade. Também os partidos de oposição, com raríssimas exceções, são partidos desacreditados. Quem, no Brasil, está na oposição política? Em primeiro lugar estão políticos e partidos que representam não o povo, e seus interesses, mas a elite brasileira. São políticos e partidos que simbolizam o que há de mais nojento na política brasileira. O PSDB, por exemplo, tenta fugir do rótulo de partido conservador e atrasado, mas, nas últimas eleições, com a candidatura de Aécio Neves, atraiu os eleitores mais retrógados, preconceituosos, e discriminadores. Ficou visível a identificação desses últimos com o partido. E, em nenhum momento da campanha, o PSDB se manifestou de maneira clara e decisiva contra determinados comportamentos e atitudes, como, por exemplo, o preconceito contra os nordestinos. As manifestações eram lacônicas e ambíguas, visando explicitamente não espantar os eleitores ultraconservadores e de direita. Nas aparências o PSDB se apresenta como partido social e democrático, mas, na prática, comporta-se como truculento e viciado, a ponto de atrair certos tipos de eleitores.

            Na oposição estão também todos os partidos que se intitulam “de esquerda”. Mas, além de divididos e com um discurso ultrapassado, seguem a mesma lógica da oposição por oposição. Recusam-se a participar do jogo democrático e terminam por não ter uma incidência significativa sobre a “res publica”. Falta a esses partidos muita dose de realismo e de capacidade para entender que política não é o mesmo que angelismo e que não existem decisões totalmente puras e isentas de ambiguidades. Participar implica, pois, aceitar a negociação e o diálogo, visando antes de tudo a democracia e o bem do povo. Muitas vezes é preferível ceder do que ser intransigente, puritano e, com isso, deixar de contribuir mais significativamente.

            Convém recordar aqui um elemento da Psicologia: como em outra situações também na política os semelhantes se atraem. A sabedoria popular rural já nos ensina isso a bastante tempo, quando afirma que “a vaca pintada sempre procura uma camarada”. Assim sendo, os atuais oposicionistas e seus partidos atraem os seus semelhantes. Se a oposição é uma oposição puramente de palanque, acreditando que estamos sempre em época de eleições, é claro que os seus simpatizantes vão ser pessoas do mesmo estilo. Pessoas que confundem política com politicagem, com jogo sujo, com “o quanto pior, melhor”.

            O que acabo de dizer ficou bem visível no retorno teatral de Aécio Neves ao Senado, após ser derrotado nas eleições presidenciais. Seu retorno foi marcado pelo tom rancoroso, arrogante, espalhafatoso, de candidato derrotado e fracassado que não aceitou as regras da democracia representativa, achando que a diferença de mais de três milhões de votos é uma bobagem. Ao prometer, em suas encenações teatrais (naquilo que Mino Carta chamou de “ópera bufa”), que faria oposição sistemática a Dilma e ao PT, Aécio, porta-voz do PSDB, de seus aliados e de seus simpatizantes da direita ultraconservadora, declarou explicitamente que ele e os que ele representa não se importam com a “res publica”.

            Ficou bem explícito na “ópera bufa” de Aécio Neves que a mentalidade da casa-grande ainda prevalece no âmbito das elites brasileiras, que continuam tratando os demais brasileiros como meros habitantes de uma senzala. Quem se opôs a tal visão no passado foi chamado de comunista. Agora, a moda é acusar de serem “bolivarianos” aqueles que resistem em aceitar o jogo sujo dessas elites. Hoje – diz Mino Carta (Carta Capital, 12/11/14, p. 20), a palavra mofada – comunismo – é substituída por “bolivariano”.

            E o pior de tudo – continua Mino Carta – é que, entre aqueles que enxergam “bolivarianos de tocaia” por toda parte, estão pretensos intelectuais, artistas, jornalistas e até magistrados. “O besteirol anda solto a serviço do mofado elitismo golpista e exibe o atraso cultural do País”, diz enfaticamente Mino (ibidem). É como se voltássemos a crer que comunistas devoram criancinhas. Isso tudo poderia ser uma piada se não fosse tão trágico. Poderia se admitir isso de algumas pessoas, mas não de quem frequenta universidades, ocupa suas cátedras ou dos que se autoproclamam “formadores de opinião pública”.

            A quase totalidade da oposição é formada de hipócritas e ama cultivar a hipocrisia. É incapaz de olhar para trás e de ver o estrago que já causou ao país no passado. Faz discurso demagógico, mas “na prática a teoria é outra”. Ainda pensa que somos todos idiotas. Tudo isso, e mais outras coisas, coloca necessariamente a oposição na cesta do conservadorismo e da direita. Uma oposição barulhenta, formada por senhores e poucas madames que ainda tratam o Brasil como uma senzala fustigada pela casa-grande. Como no passado, ficam furiosos e querem fustigar os que não aceitam mais ficar na senzala, a serviço desses senhores das elites. A reação histérica de alguns representantes dessas elites à legítima e democrática eleição de Dilma Rousseff revelou claramente essa mentalidade escravocrata, coronelista e golpista que afeta a maioria da oposição e dos que a ela se aliam. Não há como não dar razão a José Saramago, o qual, numa entrevista a um jornal, em 25/10/1995, fez a seguinte afirmação: “Estamos cada vez mais cegos, porque cada vez menos queremos ver. Todos nós somos cegos da Razão”.

domingo, 2 de novembro de 2014

Após as eleições


Por que Dilma foi reeleita?

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

            Assentada a poeira das eleições e acalmados os ânimos acirrados, vale uma reflexão mais racional. A pergunta que dá título ao presente artigo pode parecer simplista e a resposta também poderia parecer óbvia. Mas, na verdade, não é assim. Se fôssemos seguir a lógica simplista se diria, de imediato, que Dilma ganhou porque a maioria dos brasileiros preferiu assim. Embora isso seja verdade, cabe fazer uma análise mais profunda do acontecimento, uma vez que isso é bom para a democracia.

            Dilma, o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados venceram as eleições para a Presidência da República porque nenhum outro partido foi capaz de apresentar uma alternativa mais séria e mais ousada. Nenhum outro partido foi capaz de apresentar um projeto que, na prática, fosse viável e factível. Com todas as deficiências que conhecemos, o projeto do PT, de Lula e de Dilma é o único que, nos últimos doze anos, vem respondendo ao grande desafio de conciliar desenvolvimento e distribuição de renda. Quem tem boa memória e honestidade intelectual, capaz de fazer análise crítica da realidade, não poderá deixar de admitir quanto o Brasil melhorou de 2002 para cá.

Apenas um exemplo bem simples para ilustrar o que estou dizendo. Dias atrás, bem antes do segundo turno das eleições, conversava com uma senhora muito simples, mas de uma grande inteligência e capacidade aguçada de análise crítica. Coisas que faltam em muitos “intelectuais”! Ela afirmava categoricamente que a vida do povo tinha melhorado com os governos de Dilma e Lula. Quis insistir no assunto e pedi que ela me desse um exemplo de que o Brasil tinha melhorado nos últimos doze anos. E ela, sem pestanejar ou gaguejar, me respondeu categoricamente: “Há um bom tempo ninguém mais passa na porta da minha casa para pedir comida ou esmola”.

O exemplo é bem simples, mas clareia bastante o que estou querendo dizer. O projeto do PT e seus aliados, que Lula e Dilma coordenaram nos últimos doze anos, não é perfeito e nem poderia ser, pois não há, no campo da política, nenhum projeto com essa característica, mas é inegável a sua contribuição para a melhoria significativa do nosso país. Querer negar isso é tapar o sol com a peneira e viver fora da realidade, na ilusão. E porque os demais partidos foram incapazes de apresentar projetos sérios que superassem os do PT e de seus aliados e realmente convencessem a população, Dilma venceu as eleições e foi reeleita.

Vejamos rapidamente os outros projetos. O do PSDB, apoiado pelo DEM (ex-PFL, ex-PDS, ex-Arena, ex-UDN, partido da ditadura de 1964) e por alguns nanicos, já conhecemos o bastante. Além de ter leiloado o Brasil no período em que governou o país, ser campeão da corrupção, esse projeto reuniu o que há de mais asqueroso e nojento na política brasileira. Mentes inteligentes e pessoas éticas sabem disso e jamais votariam numa coligação tão representativa da banda podre da elite brasileira e dos setores mais retrógados que há quinhentos anos massacram os pobres e os pequenos desse nosso país.

Os partidos que ainda se autodenominam “de esquerda” (PSOL, PCO, PSTU, PCB) foram incapazes de se unir para formar uma alternativa e para apresentar propostas sérias e viáveis. Com um discurso atrasado, que desconhece a queda do muro de Berlim e do socialismo real, não conseguiram convencer a população brasileira e nem mesmo arrastar para seu lado os “indignados” que foram às ruas no mês de junho do ano passado. Brigas, futricas internas, personalismos, falta de realismo e outros males impediram a possibilidade de uma alternativa real que desse ao país a oportunidade de mudar. Se as esquerdas realmente tivessem se organizado e tivessem se unido, teríamos realmente uma alternativa para o futuro do país. Mas não foi o que aconteceu.

Quanto ao PSB, partido com uma longa tradição democrática e de muita luta, sua proposta não foi original. Era um plágio remendado do que o PT e seus aliados já vinham realizando. Não tinha novidades significativas a apresentar para os eleitores. O povo logo percebeu. E preferiu o original, renegando o clone remendado. Esse partido criou a ilusão em torno de uma figura mítica, Eduardo Campos, e se esqueceu de que tinha sido amparado e projetado até pouco tempo atrás pela sua ligação com o Partido dos Trabalhadores. Esqueceu-se de que essa era a sua fragilidade. Ao atacar o PT apresentou-se ao povo brasileiro como partido oportunista e traidor. E a cultura brasileira ainda não perdoa oportunismo e traição, mesmo que seja em favor de uma nobre causa.

Com a morte de Eduardo Campos a proposta do partido foi detonada pela imposição do personalismo de Marina Silva. Essa, ícone da incapacidade de agregação – já que num longo período de tempo não conseguiu atrair um número suficiente de eleitores para formar um partido – levou o PSB ao naufrágio. E, no segundo turno das eleições, ao se vender ao projeto do PSDB, Marina revelou sua face perversa, ambígua, antiética e levou consigo o partido que representava. Ficou evidente para os eleitores éticos do PSB que a proposta não era verdadeira e nem real; que o partido tinha se rendido a Marina Silva e traído a sua história de luta e a sua tradição democrática.

Os demais partidinhos que apresentaram candidatos não tinham propostas sérias, viáveis e reais. O Partido Verde, por exemplo, com a candidatura de Marina Silva, já tinha perdido a credibilidade nas eleições de 2010. E, ao apoiar Aécio Neves, no segundo turno de 2014, demostrou sua irresponsabilidade e sua falta de ética, deixando transparecer que a “sustentabilidade” por ele pregada é aquela das grandes empresas e das multinacionais que, hoje, querem ganhar muito dinheiro com o “discurso do verde”. Os demais, quase todos representativos da ultradireita, preconceituosos, racistas, homofóbicos, não tinham propostas sérias e nem credibilidade suficiente para mobilizar a população brasileira.

Restou, portanto, o projeto do PT e seus aliados que, apesar da perseguição desonesta, antiética, constante, sistemática, cruel e injusta da grande mídia, ainda convenceu a população. Apesar de suas fragilidades – que apontarei em outra ocasião – foi aquele que conseguiu convencer a maioria dos eleitores e das eleitoras.

Estou convencido de que a alternância no poder é algo sadio para a democracia. Mas quando os partidos são incapazes de apresentar alternativas sérias, viáveis, éticas, factíveis, só resta à população optar pelo que ainda há de melhor. Mesmo que o melhor seja sinônimo de continuidade. E a proposta do PT ainda foi capaz de provar que era a melhor de todas. Espero que os partidos de esquerda aprendam a lição, deixem de lado os personalismos e as ambições, e sejam capazes de oferecer ao povo brasileiro uma alternativa séria e viável nos próximos anos. Mas, para que isso aconteça, terão que sair da ilusão, não negar o óbvio, unir-se numa grande frente, de modo a angariar a simpatia das eleitoras e dos eleitores brasileiros.

Enquanto isso não acontecer, só contribuirão para a polarização das eleições, com o risco sério de que a face nojenta da política brasileira, hoje representada pelo PSDB e seus aliados, possa de novo tomar o poder. Quanto ao PSB, partido tradicionalmente de esquerda, terá que se redimir, admitindo publicamente que seu apoio à candidatura de Aécio Neves foi uma traição dos ideais democráticos, e pedir perdão ao povo brasileiro. Mas para que isso aconteça será indispensável expurgar de seus quadros a figura ambígua e desacreditada de Marina Silva. Se ela permanecer no partido, sua credibilidade terá chegado ao fim. Não há outro caminho, não há outra alternativa.

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Para ver meus artigos sobre temas ligados à religião e ao cristianismo acesse o blog: http://lisboa-ochamado.blogspot.com

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                                                 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Eleições


Desfazendo “mitos” eleitoreiros

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor

            Mais uma vez nos encontramos em período eleitoral. E nesta época sempre aparecem os “mitos”, uma vez que os brasileiros costumam discutir política não com a razão, mas com a emoção, com a mesma paixão que discutem futebol nos botequins das esquinas. Neste período, assim como acontece na discussão sobre futebol, aparecem 200 milhões de “cientistas políticos”, cada um pretendendo arrogantemente entender de política mais do que os outros.
            Não se trata de não colocar paixão na reflexão de um tema que permeia toda a vida da nação e afeta cada um de nós brasileiros. Como já dizia o poeta e dramaturgo alemão, Bertold Brecht, tudo em nossa vida depende da política: a comida, o transporte, a educação, a saúde, a roupa, o calçado etc. etc. Que bom seria que em todos os espaços, em todos os lugares, em todos os ambientes se discutisse com muita seriedade o tema da política. Mas a questão está exatamente na forma como discutimos. De um modo geral fazemos isso sem consciência crítica, sem discernimento e sem nem mesmo saber do que estamos falando. Vamos muito pelo que diz a grande mídia, envolvida e totalmente comprometida com a elite e a burguesia brasileira, as quais querem manter seus privilégios às custas do sacrifício da maioria da população brasileira. Para defender os interesses dos poderosos, a grande mídia, geralmente controlada por eles, inventa e divulga alguns “mitos” que terminam confundindo a cabeça do eleitor desavisado, levando a acreditar e a votar exatamente em quem ele nunca deveria crer e votar. Vejamos agora alguns dos “mitos” inventados pela nossa mídia.
            O primeiro deles é passar a impressão de que um candidato “ficha limpa” é um anjo, alguém sem nenhum defeito, sem nenhuma mácula. Ora, isso, além de ser falso, é irreal. Há milênios as grande culturas e as grandes experiências religiosas detectaram que “todo homem é mentiroso, todo homem”. Não há, pois, candidatos genuinamente puros, totalmente revestidos de uma lisura ímpar. Quem ainda acredita nisso é um iludido, é um idiota que não se dá conta da realidade concreta do ser humano. Como já diziam os grandes filósofos gregos, em cada um de nós habita pelo menos um anjo e um demônio. Pensar que há alguém desprovido de seu lado demoníaco é pura idiotice. O que resta fazer, então? É procurar pessoas, candidatos equilibrados, ou seja, pessoas nas quais o lado demoníaco não prevaleça. E como isso dá trabalho e as pessoas se recusam a fazer como Zaratustra, o personagem de Nietsche, saindo pelas ruas com uma tocha acesa, em pleno dia claro, à procura desses candidatos equilibrados, terminam por aderir e votar nos que aparentam ser totalmente anjos. Aliás, uma das artimanhas dos demônios é exatamente criar a ilusão de que eles são anjos puríssimos. E com o marketing em alta, isso é possível ser feito sem maiores problemas.
            Um segundo “mito”, também criado intencionalmente pela mídia “golpista”, é pensar e acreditar que “todo político é igual”, que “todos os partidos políticos são iguais”. E isso não só é falso como é profundamente enganador. No Brasil existem partidos políticos cujos programas estão totalmente voltados para os interesses das elites brasileiras. O passado destes partidos, as figuras que os compõem hoje, representam o que há de mais nojento na política brasileira. Pode-se dizer, sem medo de errar, que esses partidos hoje são bem representados pelo PSDB, pelo DEM e pelos partidos nanicos que gravitam em torno deles e a eles são subservientes. Todo eleitor crítico, consciente, ciente não vota nestes partidos. Mas há ainda bons partidos e bons políticos, cujos programas são sérios e bem significativos para o país. Mas devido ao assédio da mídia corrupta estes partidos e essas pessoas terminam permanecendo na penumbra ou sendo totalmente ignorados.
            Outro “mito” que afeta a política brasileira é pensar que a solução de todos os problemas do país passa pela eleição do poder executivo. Assim, se elegermos o presidente da República, o governador do Estado e o prefeito do município, todas as questões serão resolvidas num toque de mágica. Esse mito está tão impregnado em nossa cultura política que, neste período eleitoral, se fazem somente debates públicos com os candidatos ao executivo. Deixamos de lado e não nos importamos com a eleição dos membros do poder legislativo. Estes, porém, são aqueles que fazem as leis e porque não há debate sério sobre eles, as pessoas terminam votando em elementos não comprometidos com o bem público. Basta dar uma olhada na atual bancada da Câmara e do Senado para perceber que a maioria dos que lá estão não poderia e nem deveria ter sido eleita.
            Recentemente as elites, com o apoio da mídia a elas subservientes, criaram outro “mito”: o de que o Partido dos Trabalhadores (PT) é o único partido corrupto do Brasil. Tiveram a ajuda de um Judiciário parcial, que usando métodos questionados por eminentes juristas, tudo fizeram para massacrar algumas figuras do PT. Não se defende aqui a inocência dos membros do PT que foram acusados e condenados. O que se questiona é o fato de que a mídia e o Judiciário não tenham usado da mesma severidade com outros partidos e outros políticos. Por que, por exemplo, não puniram com o mesmo rigor o PSDB, envolvido até o pescoço na lama da privataria tucana e no escândalo do metrô de São Paulo, cujas empresas ligadas ao dito escândalo continuam descaradamente patrocinando as campanhas dos candidatos suspeitos? Por que os políticos da “Caixa de Pandora” do Distrito Federal, pegos repartindo polpudas propinas, continuam impunes até agora? Alguns deles inclusive concorrendo, no momento, a cargos políticos ou obrigados a renunciar por serem “fichas sujas”, mais porcos do que “pau de galinheiro”. Percebe-se, então, que tudo não passou de uma armadilha, com o objetivo explícito de desviar a atenção dos verdadeiros corruptos. O próprio Ministério Público, por exemplo, não quis “cortar na própria carne”. Deixou impune até agora um dos seus membros, o ex-senador Demóstenes Torres, moleque de recado do bandido Carlinhos Cachoeira no Senado. Não se pode acreditar na seriedade de um poder judiciário que prende “ladrões de galinha” e deixa solto este tipo bandido de alta periculosidade para o povo, para a nação e para o país. Este tipo de judiciário já perdeu por completo a sua credibilidade juntos às pessoas sérias, dotadas de cérebro pensante e que raciocinam com espírito crítico.
            Por fim um outro mito: a do messianismo político, ou seja, da figura do salvador da pátria. De repente, no cenário político, surge alguém com ideias mirabolantes, com a história de única alternativa possível, teatralizando, como sendo a salvação da pátria. E boa parte dos brasileiros fica encantada com o discurso bonito, com o espetáculo teatral bem montado, e se deixa enganar. Não percebe que se trata de alguém que não traz nenhuma novidade concreta. Pegou carona com outros partidos, aproveitou-se do espaço que lhe foi dado, comportou-se de maneira desleal com os seus aliados de outrora, e, de repente, se apresenta como a grande alternativa. Mas basta prestar atenção para se ver que, na prática, não há nada de novo. Mesmo porque os grandes problemas da nação não se resolvem nos palanques e com palavrórios bonitos dos programas políticos.
            Portanto, se queremos votar bem temos que desfazer todos esses “mitos”, refletir com seriedade, usando a razão e não apenas a emoção. Há candidatos sérios, comprometidos com o bem comum. Temos que nos dar ao trabalho de procurá-los e de encontrá-los. Temos que recusar veementemente os “clichês” fabricados pela grande mídia. Temos que nos reunir para conversar, deixando de lado paixões desenfreadas, guiando-nos pela lógica, pela objetividade e pela racionalidade. Do contrário seremos apenas marionetes e terminaremos por votar em quem nunca deveríamos votar. Mas para fazer tudo isso temos que agir com humildade, escutando os outros, aprendendo com os outros e com a história e até abrindo mão de visões deturpadas, parciais, que até então carregávamos conosco. Convém jamais esquecer de que, na prática, a teoria é outra, especialmente na política. Quem chega com ideias mirabolantes, com chavões ultrapassados, fazendo teatro para chamar a atenção sobre si, prometendo resolver tudo num toque de mágica, é um mentiroso, um falso político, um hipócrita. Este sujeito não merece a confiança do eleitor sério e honesto.